A minha avó foi a pessoa que conheci que percebia menos de futebol. E não estou a esquecer Vale e Azevedo. Era zero, nada, nicles. Quando muito, a famosa frase dos «homens atrás de uma bola». Algo mais que isto era impossível. Acredito, aliás, que este retrato se adeque a muitas avós desse lado.

Ora, mas para mal dos seus pecados, coitada, lá tinha de gramar com o futebol para agradar ao resto da casa. Muitas vezes até. Nem que fosse à hora da novela. Naturalmente não ficava por lá muito tempo.

Sentava-se e perguntava: «Isto é onde?». Como se fizesse alguma diferença. Resolvido o diferendo, mais um minuto de silêncio e o invariável: «E quem joga?». Pergunta pertinente e de resposta simples. E aí vinha o ponto chave. Simulando que a resposta foi Benfica-Sporting: «E os do Benfica, são os vermelhos?»

Normalmente sim. Como os do Sporting eram os verdes e os do FC Porto eram os azuis. Por vezes eram brancos, para não confundir. E esta é a palavra certa.

Antes de o sentido fashion ter entrado no futebol, até a minha avó, de longe a pessoa que menos percebia de futebol, e, por via das dúvidas, volto a sublinhar que não estou a esquecer Vale e Azevedo, durante os cinco minutos de paciência que dava àquilo que a obrigavam a ver na TV, conseguia ficar a saber o básico. Um clube, uma cor. Duas, no máximo.

Hoje, a minha avó perceberia ainda menos de futebol. Teria de explicar-lhe, por exemplo, que os do FC Porto também podem ser os de castanho, como outrora os de cor de rosa - que também já foram os do Benfica - os de amarelo ou roxo, que também poderiam ter sido os do Sporting.

Nos dias de hoje, o verdinho Rio Ave, imaginem, podem ser os de vermelho, como os de amarelo fluorescente podem ser os do Sp. Braga ou do V. Setúbal, ou os de laranja podem ser os do Arouca ou do Paços de Ferreira.

E a pior parte é que, de ano para ano, tudo pode mudar. Portanto, nem sequer toquei nos daltónicos e já dá para ter uma noção da confusão que esta overdose de cores pode provocar aos menos conhecedores. Como a minha avó. Ou Vale e Azevedo.

Lembrei-me disto há dias. Ao ver o possível equipamento do FC Porto para 2016/17, dei por mim a pensar: «Pois é, assim é que é a camisola do FC Porto!» E só estamos a falar da principal...

Não acho que tenha sido um acaso que a pior época de sempre do Benfica tenha sido num ano em que mudou tanto a camisola alternativa a ponto de ser azul, a cor de um dos maiores rivais. Como não acho coincidência que tenha sido um FC Porto de cor de rosa a entregar o bicampeonato a Jesus.

Neste campo, permitam-me, sou um purista. Camisola principal intocável, alternativo branco ou negro para quem joga de branco. E, se a matemática não me falha, resolveria o objetivo mor pelo qual se criou o equipamento alternativo: não confundir.

Seria menos fashion, porventura, menos rentável, certamente. Mas mais simbólico e, por isso, mais bonito. Aliás, o Benfica voltou ao clássico no último par de anos e não parece que venda assim tão pouco quanto isso.

Quem prefere, de resto, um amarelo a um verde e branco à Sporting? Quem quer que o castanho FC Porto passe a ser uma cor para a história? Quando pedem uma coca-cola e vos perguntam se «pode ser Pepsi?», não está bem explícito que a alternativa não tem o valor da escolha principal?

Portanto, se um génio da lâmpada me concedesse um desejo a meio do ano, olhava para o futebol e tornava-o mais fiel ao de sempre. Deixava o colorido para aquilo que os artistas fizessem no relvado. Arrepio-me sempre que um jogo começa com equipamentos alternativos dos dois lados. Está lá o nome, está lá o símbolo e os jogadores do costume. Mas a história fica à porta.

É triste. Urge dar valor a um legado, muitas vezes, centenário. Para que um dia, se alguém me perguntar, não ter de dizer que os de Portugal são os verde água. Iria confundir muita gente menos conhecedora.

Como a minha avó.

Ou Vale e Azevedo.

«Cartão de memória» é um espaço de opinião/recordação, com pontes para a atualidade. Por vezes sério, por vezes leve. Como o futebol, no fundo. Pode questionar o autor através do Twitter