António Oliveira contou, um dia, uma história que resume perfeitamente o ser Portugal. Durante a sua segunda passagem pela seleção, salvo erro num jogo com a Holanda, teve o azar de apanhar um adepto mais chato nos lugares imediatamente atrás do seu banco de suplentes. «Mete o Pauleta!», gritou-lhe, de forma constante, a partir de dada altura. De tal forma foi irritante que António Oliveira, farto de o ouvir, virou-se para trás e respondeu-lhe: «Oh amigo, você não vê que o Pauleta está a jogar?» A hesitação durou dois segundos: «Então, tira o Pauleta!».

Ser Portugal é uma insatisfação constante.

É estar a ganhar 5-0 e, por entre um «não fazem mais do que a obrigação», ainda atirar um «mas com este no lugar daquele dávamos seis». Isto, naturalmente, até poderia ser bom. Se a insatisfação constante fosse própria. Mas normalmente é alheia.

Ser Portugal é olhar para a Torre Eiffel e dizer «ok, não está mau, mas com mais meia dúzia de traves de ferro ali a meio, não ficava pior.» É procurar uma sombra na praia de Copacabana ou um tapete rolante na muralha da China.

É ter na seleção alguém que ganhou três vezes a Bola de Ouro mas achar, ao segundo jogo mau, que «devíamos era tentar sem ele». Como se Vasco da Gama olhasse para a Nau São Gabriel e visse ali material bom demais. Bora lá ir de bote para a Índia.

Ser Portugal é, então, querer mudar. Se o clima muda, se a moeda muda, se Scolari muda, se Bruce Jenner muda, por que não mudar também?

Mudar é ponto assente. Para onde, já é outra questão. Para os do Benfica, os do Sporting ou os do FC Porto. Para os que não são do Jorge Mendes, pois claro, exceto em 2004, o exemplo de ouro dos apologistas da mudança, onde deu jeito mudar para um meio campo 100 por cento «mendiano».

Ser Portugal é elogiar as rotinas, mas querer os melhores. Ou os que estão em melhor forma, ou que jogam no nosso clube, ou que levam bola até ao ataque, por um lado, mas, por outro os que também ajudam na defesa. É transformar o verbo «querer» em «exigir». É ficar furioso porque o adversário tocou na bola.

É dizer que os que pedem apoio em vez de crítica, numa altura em que nada está perdido, têm problemas com a liberdade de expressão.

Tudo isto só me faz aumentar as saudades daquele mês em que Portugal não foi Portugal. Em que Portugal viveu em êxtase com uma péssima exibição e derrota em casa com a Grécia; uma exibição q.b. contra dez russos; um golpe de sorte que abateu os espanhóis; um jogo épico, mas feliz, com Inglaterra; uma única vitória categórica (e mesmo assim pela margem mínima) contra a Holanda; e o desfecho que todos sabem.

Naquele mês em que Portugal foi outro país qualquer, foram as pessoas que ajudaram a escrever a história. Portugal é um país em que não há cultura de apoio à seleção, em que se goza com quem coloca bandeiras à janela, em que se diz que quem veste a camisola só pode ser emigrante, em que o estádio irrompe num silêncio constrangedor sempre que arranca um jogo.

Mas no mês em que Portugal não foi Portugal a alegria contagiante passou de fora para dentro. Como nunca. Há poucas coisas que me emocionam tanto como aquela viagem de autocarro a caminho da final.

No mês em que Portugal não foi Portugal toda a gente tinha opinião, toda a gente queria mudar. Houve críticas, pedidos, exigências. Como sempre. E como sempre vai haver. Mas houve algo que se sobrepôs a tudo o resto: vontade em mostrar um país que, bem sabemos, não é o nosso.

Mas, assumo, gostei de lá viver.

«Cartão de memória» é um espaço de opinião/recordação, com pontes para a atualidade. Por vezes sério, por vezes leve. Como o futebol, no fundo. Pode questionar o autor através do Twitter.