Uma bola, duas equipas e uma só baliza, porque chega muito bem.

Um rapaz de costas, um lançamento para o ar. Sem apito, sem troca de galhardetes, sem cronómetro.

Dois contra dois, três contra três, quatro contra quatro. Mais do que isso já não: pega-se em mais duas pedras e joga-se a campo todo.

Sem estratégia, sem defesas, sem avançados. Eu ataco, tu atacas. Eu corro, tu corres. Ai de ti se não corres. Não ando aqui a correr para ti.

Dois insultos, um grito. «Estou só». «Vira». «Passa». Chuta não, porque o golo é meu. De pé direito ou esquerdo, de cabeça ou calcanhar. Sem preparação, sem pensamento. Desde que entre.

Ao lado. Tudo de novo.

Por cima. Dois minutos de discussão. Foi por cima a sério? Ele chegava? Não chegava? Não dava para chegar que ela passou por aqui, enquanto se levantava a mão dobrada a indicar uma linha imaginária fora do alcance de qualquer um daquela idade.

Golo. Só falta um. Aos dois o da baliza escolhe um dos que perdem e a bola continua.

E assim se passava uma tarde. O «vira pra trás» (já ouvi chamarem-lhe «trancadinha») veio-me à memória ao ler este texto do Vítor Hugo Alvarenga. A falta que faz uma rua aos miúdos de 2014.

Eu tive-a, felizmente. Tinha pedras a fazer de baliza, discussões de hora a hora, guarda-redes de improviso, calças rasgadas nos joelhos, sapatilhas rebentadas e bolas já daquele castanho-papelão, depois de cair a capa colorida.

Tive uma rua para mim e para os da minha equipa. Que, como em todas as ruas, tinha espaço para o «ganância» e para o «mamão». O que não passava a bola a ninguém e o que se colava ao guarda-redes à espera de um ressalto.

Havia improviso, risco e contusões. Ousadia, rasgo e joelhos esfarrapados. Ralhetes dos vizinhos, um chinelo no telhado da casa em frente depois de um remate mal pensado, uma janela partida (uma só vez em muitos anos).

Um muro com um grafiti de sujidade das marcas das bolas. Seja no «vira pra trás» ou na «paredinha», se fossemos poucos ou estivéssemos cansados.

A rua estava aberta e assim continua. Tinha carros, não tinha mensalidade. Tinha pedras, não tinha balizas. Tinha muita imaginação. Muito desenrasque. Não tinha o futebol de uma academia. Tinha a bola.

Ainda hoje gosto de dizer que vou jogar à bola. Primeiro porque, de facto, não tenho grande jeito para o futebol. Depois porque me lembra a rua deserta em frente a minha casa, em abril de 2014. Como em 2013. E 2012. E antes, e antes.

A rua está aberta, mas fechou. Não tem clientes.

É o chamado fim de ciclo. 

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