Estávamos em 2003. O FC Porto de José Mourinho recebia o Real Madrid de Carlos Queiroz em jogo da Liga dos Campeões. Antes do mesmo, em declarações aos jornalistas, José Peseiro, adjunto, desfazia-se em elogios ao clube português mas rematava com uma frase que me ficou na cabeça: «Atenção, nós somos o Real Madrid».

Alguma vez tiveram aquela sensação de «isto é verdade, mas não faz sentido»? Aconteceu-me ali.

A declaração de Peseiro era factual e inatacável, mas na minha cabeça só estava: o treinador do Nacional acabou de dizer «nós somos o Real Madrid». Era como se ouvisse, sei lá, Tino de Rans atirar: «Atenção, eu vou ser Presidente da República». Algo deste género.

Ora esta é, portanto, a primeira recordação forte que tenho do novo treinador do FC Porto. Marcou-me. O trabalho no Nacional já tinha sido interessante, mas a subida ao Real Madrid, mesmo que nas costas de Queiroz, surpreendeu-me.

No final daquele jogo, Peseiro levou a vitória para casa. No final daquele ano, Mourinho levou a Champions. Peseiro, por essa altura, já não dizia com a mesma força «nós somos o Real Madrid» porque, efetivamente, deixou de ser no final da época.

Portanto, recordando aquele momento, admito: houve preconceito da minha parte. Está curado, há muito. A questão que coloco é: e com vocês?

A notícia da iminente contratação de José Peseiro para treinador do FC Porto esteve longe (muito longe) de criar entusiasmo. Compreendo, em parte. Apenas porque a euforia ocupa sempre mais espaço no coração do adepto do que a razão.

Tenho dúvidas que o dossier tenha sido bem gerido. Pelo tempo que demorou, pelos vários nomes que foram surgindo e, quase um a um, rejeitando a possibilidade. Dificilmente o FC Porto conseguirá convencer a massa que Peseiro foi a primeira escolha. Não tenho dúvidas que o tentará fazer.

Dito isto e para provar que o meu preconceito de 2003 já lá vai, não tenho dúvidas em admitir: José Peseiro é uma boa escolha, atendendo a todas as condicionantes.

Não o acho um génio da bola, mas reconheço a qualidade evidente no futebol das suas equipas, algo que se reclama no Dragão talvez desde André Villas-Boas. Não tem um currículo vistoso, mas tem experiência num grande, conhecimento da realidade do FC Porto, como observador, e da Liga portuguesa, como participante. Não tem fama de disciplinador, mas costuma ter impacto imediato: basta recordar como a sua carreira no Sp. Braga foi marcada pelo excelente início. O FC Porto precisa desse choque.

Perdeu uma final da Taça UEFA, em casa. O treinador que lidera o campeonato e venceu os últimos dois perdeu duas seguidas, com a agravante de, no primeiro desses anos, lhe juntar campeonato e Taça.

Mesmo se comparado o trabalho em Braga, clube que ambos treinaram, Peseiro foi quarto atrás do Paços de Ferreira. Jesus foi quinto atrás do Nacional. Jesus pôde reerguer-se, porque lhe deram condições. Peseiro terá, agora, essa oportunidade, embora já tenha ganhado uma Taça da Liga. Parece coisa pouca, mas a coluna dos troféus de Braga não tem estado muito preenchida.

Peseiro merece, no mínimo, o benefício da dúvida. Tudo o resto é, apenas, preconceito.

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