Este é um texto para ser lido com palmas a compasso.

Porque era o que eles ouviam.

Colocavam a bola no chão com o carinho de quem pega num filho ao colo. Uma palma ao fundo. Rezavam meia dúzia de preces. Outra palma, agora. Levantavam a bola para um beijinho, os que fossem mais apaixonados por ela. Mais palmas. Era como um pedido de desculpas para o que lhe iam fazer a seguir. As palmas aumentavam. Um carinho antes de a violentarem com tudo o que tinham. E as palmas, sempre.

O ritmo ficava mais frenético. Eles davam passos atrás. Uns mais, outros menos. Quase todos mais. E as lá palmas caíam. Pam. Pam. Eles corriam para a bola. E as palmas já mascaradas de aplauso contínuo. Eles preparavam o remate.

E, quase sempre, atiravam para fora. Ou contra barreira. Outras vezes metiam-na na baliza. Que belo que era quando as palmas se transformavam em grito de euforia.

Tinha valido a pena.

As palmas eram a sua música de entrada. O seu cartão-de-visita. Um dos reflexos condicionados que tanto prezam ao adepto de futebol.

Como gritar um OOOOOOO seguido antes de um pontapé de baliza e insinuar que as origens do guarda-redes não são as mais dignas. Como gritar «Mão!» quando a bola bate em qualquer parte que se pareça com a mão. Como dividir de forma perfeita as sílabas de ga-tu-no e repetir até cansar. Como bater com a baqueta no tambor sempre com a mesma musiquinha: pam, pam/ Pam, pam, pam/ Pam, pam, pam, pam/ Pam, Pam.

As palmas eram, enfim, o anúncio. Vem aí o bombardeiro. Vem aí Heitor. Ou Paulo Torres. Vem Dinda, que não é Formoso, mas é seguro. Vem Barroso, sem problemas intestinais. Vem Delfim. Vem Pedrosa. Celso ou Geraldão.

E vinham de várias origens, mas a maioria do Brasil, como Valtinho, Branco, Doriva ou Ronny. Ou Isaías, o homem de quem se diz ter colocado uma bola fora do Estádio da Luz. Nunca soube se era verdade ou mito, mas respondia sempre da mesma forma: se alguém conseguia, era Isaías.

Talvez Sanchez também conseguisse, não andasse ocupado a ser o Platini da Bolívia, quando poderia ser o Nkama dos Andes.

Gostava deles, assumo. De todos os que traçavam uma linha reta para o golo. Ou, no mínimo, para lá perto. De todos os que davam razão às vozes da rádio que anunciam perigo três metros à frente do meio campo.

Com eles era assim. Como Maurício, do Estoril, que batia direto tudo o que fosse para lá da linha divisória.

Eram visionários. Olhavam para uma árvore e viam um armário. Estavam sempre um passo à frente. Eram um grito contra a falta de originalidade de quem toca para o lado um livre a 40 metros. De quem sai a jogar quando pode dar um pontapé. De quem passa em vez de chutar.

O futebol português perdeu-os, mas precisa deles. Voltem, estão perdoados. Até para dar razão aos que tudo o que sabem deste mundo é que o «futebol é uma data de homens aos pontapés numa bola». Pontapés, perceberam? E de força, claro.

Foram-se com o tempo. Culpa do futebol moderno que começa a abusar no conforto. Até para quem fica na barreira.

«Cartão de Memória» é um espaço de opinião/recordação, com pontes para a atualidade. Por vezes sério, por vezes leve. Como o futebol, no fundo. Pode questionar o autor através do Twitter