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É uma das cenas mais memoráveis na história do cinema.

«- Cheiras isto? Consegues cheirar isto?

- O quê?

- O napalm, filho. Nada no mundo cheira assim. Adoro o cheiro a napalm pela manhã.»

O tenente-coronel Bill Kilgore ajoelha-se, pega num pedaço da lamacenta terra vietnamita e inspira o ar matinal. Soam as Valquírias, de Richard Wagner, pressentimos o bombardeamento.

Apocalypse Now.

O que traz o talento de Coppola a estas linhas sobre futebol? O apetite pela destruição.

O prazer de cheirar a mortandade do lado inimigo, a ânsia de sangue – desculpem-me o peso das palavras, dão imenso jeito à analogia.

Coppola é Conceição e o napalm é a pressão alta do FC Porto. Em San Siro, num dos mais extraordinários palcos do futebol mundial, o dragão provou que é (e que está obrigado a ser) tão grande como os maiores da Europa.

Mérito do treinador atual, capaz de recuperar uma aura uefeira que parecia adormecida ou, no mínimo, que surgia demasiadas vezes numa versão encolhida.

Incompatível com a exigência histórica do clube, inaceitável aos olhos dos adeptos - bem habituados a memórias de glória e estoicismo.

Os números ajudam-me a sustentar a tese. Com Sérgio Conceição, o FC Porto leva 42 jogos europeus. Exceção feita à campanha triste de 2019/20, o clube esteve em dois quartos-de-final e nuns oitavos-de-final da Liga dos Campeões, num total de 20 vitórias e 7 empates na UEFA.

Não é só. Exceção feita aos duelos contra o Liverpool – sobre os quais já escrevi AQUI -, o FC Porto abandonou uma irritante tendência para abdicar das suas convicções sempre que o grau de dificuldade dos jogos convida ao temor.

Tornaram-se tristemente famosas as adaptações tolhidas dos tempos de Jesualdo Ferreira, quando os centrais se tornavam laterais e/ou trincos com uma naturalidade impossível de assimilar. Bem sei que há um 2-2 em Old Trafford a contrariar a minha teoria, e eu até lá estava. É uma boa exceção.

Quem vive na cidade do Porto, e quem passou a infância e a adolescência nas décadas de 80 e 90, conhece a cultura de exigência que envolve o Dragão e a pressão que a nostalgia das grandes noites europeias impõe aos treinadores. Sérgio Conceição sabe-o melhor do que eu.

Não é possível ter consciência do que se passou em Basileia-1984, Viena-1987, Bremen-1994, San Siro-1996, Sevilha-2003 ou Gelsenkirchen-2004 e assentir em concordância com a mediocridade.

Conceição tem este grande mérito: recuperou a irredutibilidade do FC Porto.

Cercado por clubes-estado e milionários de ligas de outros planetas, os azuis e brancos têm sido capazes de uma venial competitividade regular na Europa. Só a podemos elogiar, gostemos mais ou menos das ideias e do feitio do técnico.

A ganhar ou a perder, o ADN do clube é o que se espalhou pelo relvado de San Siro. A fúria para pegar o jogo pelos colarinhos, o desejo de esbofeteá-lo e ser capaz de exibir autoridade.

Mostrar cara feia. Como se acabasse de acordar e inspirasse aquela brisa madrugadora tão boa, carregadinha de napalm.

PS1: podia estar aqui a tecer loas ao Sporting europeu, sim senhor, mas preciso de uma amostra mais exigente do que o Besiktas para ter uma opinião mais vincada sobre os leões. O grande teste chama-se Borussia Dortmund.

PS2: Jesus pode ir buscar os argumentos, as explicações e as atenuantes que quiser. O duelo entre o Benfica e o Bayern, no conjunto das duas mãos, acabou com um penoso 9-2 para os alemães. É este o grande Benfica europeu que ouvimos a ser anunciado há mais de uma década?

PS3: o FC Porto tem Anfield para provar que o meu título não é um exagero.

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