Os «Anos de Chumbo» tinham ficado para trás e a ditadura militar brasileira começava a perder força quando em 1979 e 1980 o ABC Paulista, cintura industrial de São Paulo, parou.

Mais de 150 mil trabalhadores chegaram aos 41 dias de greve em luta por melhores condições salariais. Na frente deles, um metalúrgico que pela eloquência e coragem se havia assumido como líder sindical.

Lula da Silva fez o regime tremer, um par de anos antes de ganhar um grupo de aliados improváveis dentro de um campo de futebol.

A «Democracia Corinthiana» terá nascido no dia em que Adilson Monteiro Alves, um sociólogo de esquerda que o recém-eleito presidente Waldemar Pires estranhamente escolheu para diretor do futebol, entrou no balneário para se apresentar a um plantel desmoralizado pelos maus resultados.

Como recorda o jornalista Juca Kfouri, quando Adilson entrou encontrou lá dentro «um médico (Sócrates), um adolescente revoltado (Casagrande, que mais tarde jogou no FC Porto), um negrinho com muita personalidade (Wladimir)… E um grupo de pessoas que dizia ‘É, isso aqui está uma merda’».

«Então, vamos fazer diferente», respondeu... E a curta reunião de dez minutos transformou-se num plenário de seis horas. Começava a tomar forma aquele pequeno grupo de rebeldes, jogadores politizados, que pelo seu exemplo de organização democrática se tornaram um perigo para o regime.

Contratar este ou aquele jogador? Datas e regras dos estágios antes dos jogos? Vota-se. Todos votam, tudo se vota e, no final, a maioria vence.

Democracia? Sim. Revolução? Também, sobretudo considerando as contingências de uma ditadura militar e o foco mediático que toda aquela experiência atraiu.

«Eu, que era o único jogador de seleção brasileira, tinha o mesmo peso que o diretor do clube ou o rapaz que limpava as minhas chuteiras. Isso é a coisa mais bonita do mundo…», recordou Sócrates no documentário «Ser Campeão é Detalhe».

Por sua vez, Lula da Silva, adepto do «Timão» – que mais tarde seria apoiado pelo médico e ex-craque Sócrates nas candidaturas à presidência do Brasil – recorda a conjuntura histórica como um tempo em que «as pessoas compreenderam que o futebol não era aquela alienação que alguns setores da Esquerda falavam».

A equipa, que acabaria por sagrar-se bicampeã paulista, «jogava por música», ao toque do calcanhar de Sócrates, que celebrava cada golo com um punho cerrado. E a política tornou-se cada vez mais um estandarte. Literalmente. A ponto de o «clube do povo» se envolver diretamente na defesa da transição para um regime democrático no Brasil.

Em 1984, durante a campanha «Diretas Já», em que se discutia a eleição do Presidente da República por eleição direta, o Corinthians – que no lugar do patrocínio usava nas camisolas a expressão «Democracia Corinthiana», entretanto proibida – entrou em campo com o célebre estandarte «Ganhar ou perder… Mas sempre com democracia».

Sócrates, já muito cobiçado no futebol italiano, envolveu-se ainda mais na na campanha e na mega-manifestação perante 1,5 milhões de pessoas no centro de São Paulo jogou o seu trunfo: «Se o “Sim” nas "Diretas" ganhar… Eu não saio do meu país!»

O «Sim» perdeu. Frustrado, o «Doutor» assinou pela Fiorentina.

Por estes dias, voltou a haver manifestações gigantescas em São Paulo, tal como noutras cidades. Dois Brasis enfrentaram-se.

O possível envolvimento do ex-presidente Lula da Silva em casos de corrupção, mas também a falta de independência do sistema judicial brasileiro, a parcialidade da comunicação social ou a inexistência de uma alternativa credível à queda de Dilma do poder não são detalhes.

Há, no entanto, algo ainda mais preocupante: milhares de pessoas nas manifestações contra o Partido dos Trabalhadores pediam uma intervenção militar.

Na passada sexta-feira, na contramanifestação de apoio à presidente e ao seu antecessor e histórico líder do PT, um grupo de adeptos empunhava a faixa «Democracia Corinthiana contra o golpe».

Naquele quarteirão da Avenida Paulista, entre sindicatos, militantes e grupos estudantis, esse grupo de resistentes destacava-se. Como se ali estivessem guardiões do legado de Sócrates, falecido em 2011, recordando aos adversários políticos um lema que, três décadas depois, parte do Brasil parece ter esquecido: «Ganhar ou perder… Mas sempre com democracia.»

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.