Imaginem o cenário. Portugal joga a final do Europeu com a França, em França, fica sem o capitão e melhor jogador ainda cedo no jogo, resiste estoicamente às investidas contrárias, aguenta até ao prolongamento, marca num remate do mal-amado do grupo, celebra como se não houvesse nada mais importante no mundo, com desconhecidos abraçados, lágrimas a rolar, João Ricardo Pateiro a cantar e muita gente a ficar sem pulmões. E, depois da euforia, enquanto voltam ao lugar para ver o que falta do jogo, surge o alerta: vídeo-árbitro. Há uma falta de João Moutinho sobre Griezmann no início da jogada e tudo o que viveram no último minuto não contou.
Este seria o filme da final do Euro 2016, provavelmente, se já houvesse vídeo-árbitro.
Imaginem outro cenário. França e República da Irlanda disputam um playoff de acesso ao Mundial. Jogo decisivo, com os irlandeses a surpreenderem em casa do rival, anulando a desvantagem da primeira mão. Até que uma bola chega à área, um avançado francês controla-a com o braço e assiste o colega para o golo. O mundo explode de revolta: como é possível? E ninguém faz nada? Ainda os protestos são bem audíveis e surge o alerta: vídeo-arbitro. O lance está anulado e volta tudo à estaca zero.
Este seria o final do jogo que levou a França ao Mundial da África do Sul, provavelmente, se já houvesse vídeo-árbitro.
É nesta linha, entre a emoção e a justiça, que se movem as minhas dúvidas sobre o novo sistema. Que fique claro: não apoio o erro. Tenho, apenas, o receio natural de que o desporto mais apaixonante do mundo fique descaracterizado.
Este domingo, na Taça das Confederações, o vídeo-árbitro entrou em ação três vezes e acertou sempre. Uma delas, num golo anulado ao Chile, num lance tão difícil que até as primeiras repetições davam a entender que tinha sido um erro não validá-lo.
Mas foi o lance do golo anulado a Portugal que me fez erguer a sobrancelha: a irregularidade, evidente, foi detetada bem antes do remate vitorioso. A análise a toda a jogada antecedente leva a que qualquer golo seja um golo a prazo até que passe um minuto sem qualquer sinal estranho.
Neste momento, já se formam exércitos: de um lado, os defensores da emoção do jogo; do outro, os defensores da justiça extrema. Eu encontro-me no meio, aguardando mais provas para perceber onde cair.
Agrada-me a ideia de corrigir um erro, incomoda-me que todos os golos sejam a prazo. Como aquela jogada clássica do futebol em que parece mesmo fora de jogo na televisão, mas o árbitro valida porque, afinal, havia um defesa, fora do enquadramento, a colocar o homem em jogo. «Ninguém» festeja um golo desses, porque acha que será anulado. É, portanto, um golo diferente dos outros.
A partir de agora, poderá ser um golo como qualquer outro.
Defender a emoção não é ser a favor do erro, teoria que circula por aí. Da mesma forma que defender a justiça não é querer fazer do futebol matemática. A questão é que o segundo em que a bola passa a linha de baliza era especial, incrível. Agora, esse dom será apenas do segundo em que o árbitro aponta para o centro do relvado,quase um minuto depois. É igual? Tenho dúvidas.
Acredito que possa ser apenas uma questão de hábito. E gostava, mesmo, de ver o erro reduzido ao mínimo possível em qualquer jogo.
Espero, contudo, que isso não signifique sacrificar a paixão do golo, a explosão de um estádio ou os abraços a desconhecidos que vivem a mesma sensação única e inexplicável. Não quero um futebol robotizado e mecânico, mas humano como sempre foi. Eu sei que não se pode ter tudo, mas não dá para conseguir os dois?
«O GOLO DO EDER» é um espaço de opinião no Maisfutebol, do mesmo autor de «Cartão de memória».Porque há momentos que merecem a eternidade e porque nada representará melhor o futebol português, tema central dos artigos, do que o minuto 109 de Paris. Siga o autor no Twitter.