PLAY é um espaço semanal de partilha, sugestão e crítica. O futebol espelhado no cinema, na música, na literatura. Outros mundos, o mesmo ponto de partida. Ideias soltas, filmes e livros que foram perdendo a vez na fila de espera. PLAY.

SLOW MOTION:

«COACH ZORAN AND HIS AFRICAN TIGERS» - de Sam Benstead
Não acredito em unanimismos. Escondem sempre uma faceta perniciosa, como se nos tentassem convencer, por todos os meios, da pureza angelical de algo que está longe de ser insofismável.

Ninguém possui a sabedoria absoluta, a resolução para todos os males, a capacidade de decidir sempre bem e no instante apropriado.

Começo assim para chegar onde pretendo. Aos treinadores de futebol. Afinal, existe algum molde de perfeição infalível, capaz de per se assegurar vitórias atrás de vitórias? Não, não e não.

Felizmente, o desporto, neste caso o futebol, possui variáveis incontroláveis. Até inexplicáveis. A equação «treinador sereno+metódico+bom comunicador» não suplanta, em abstrato, a concorrente «explosivo+empírico+pragmático».

O que é para mim um bom treinador? Um homem capaz de perceber o que o rodeia e, a partir daí, encaixar as suas ideias no contexto vigente.

Vamos a exemplos. Época 1992/93. Segundo ano de iniciados na minha então prometedora carreira. O treinador é um homem irascível, de olhar tenebroso e discurso ameaçador. O senhor Luís.

Por outras palavras: o homem conseguia tudo o que queria de nós, um grupo de futebolistas de 13/14 anos, através de uma doutrina baseada na disseminação do medo.

Salto já para o fim e acrescento que essa foi uma temporada de grandes vitórias e resultados históricos.

Medo. Terror. Sim, eram os sinais mais fortes desse homem nos treinos e jogos. Fora do campo e do balneário? Uma joia de moço, de bom trato, sempre afável.

Certo dia, na Póvoa de Varzim, destruiu o balneário ao intervalo. Entrámos a tremer, o ambiente era duro, e sofremos dois golos de rompante. Os berros do bom do Luís fizeram toda a diferença. Partiu cadeiras, deu murros numa mesa, atirou garrafas ao chão. Nós? Em silêncio, de olhos arregalados.

Recordo-me da última frase, ameaçadora, antes do regresso ao campo: «no final do jogo, não se esqueçam, encontramo-nos todos aqui». Empatámos 2-2, recebemos abraços e juras de amor eterno. Era assim o Luís.

Só mais uma estória. Num jogo decisivo contra o Avintes, no nosso pelado, fizemos uma primeira parte razoável. 0-0, tudo aparentemente tranquilo. Mas havia um problema. O nosso melhor jogador não tinha feito nada. Nadinha, zero.

«O que é que tens hoje? Não falas? Mostra-me as tuas chuteiras». O Nelsinho, craque, mostrou as chuteiras e o Luís ficou doido. Tinha pitões de alumínio, algo absolutamente proibido entre nós. O Nelsinho saiu ao intervalo, a chorar, entrou o Barbosa. Mas havia outro problema.

O Barbosa entrou e também levava pitões de alumínio. Ninguém reparou até ele estar em campo. E agora? «Agora aguenta, pá, e se não ganharmos falamos no final». Ganhámos 1-0, golo do Barbosa, chuteira com pitão de alumínio. A proibição morreu nesse jogo.   

Bem, tudo isto para dizer que o senhor Luís, homem de conhecimentos limitados, retirou tudo e mais alguma coisa da equipa, da forma que sabia. A estratégia é mais do que discutível, nada pedagógica, mas resultou.

É melhor um futebol de passe curto e apoiado, ou é preferível apostar nas transições rápidas e na pressão alta? Influencia mais um discurso agressivo ou palavras de camaradagem? No desporto que tanto amamos é tudo discutível, tudo.

Para mim, um bom treinador tem de ser um homem corajoso e capaz de se afirmar em cenários ingratos. Sugiro-vos, pois, um documentário sobre um bom treinador: Zoran Djordevic, um sérvio de 63, trota-mundos, ex-selecionador do Sudão do Sul. A versão profissional do senhor Luís.



PS: «Better Call Saul» - de Vince Gilligan e Peter Gould.
Depois de Breaking Bad, provavelmente a melhor série televisiva de todos os tempos, Gilligan e Gould voltam a encher-nos de mimos, desta vez com um spin-off da aclamada produção.

Lembram-se de Saul Goodman, o advogado de bom coração, mas capaz de tudo para defender os seus clientes de má reputação? Agora é ele o protagonista.

Voltamos a Albuquerque, Novo México, aos truques e esquemas impagáveis, aos diálogos entre o humor negro, o non sense e a genialidade, à realização atenta ao detalhe mais ínfimo, à riqueza das personagens secundárias, todas elas a prometerem episódios extraordinários.

Better Call Saul arranca com Saul ainda a ser James McGill, um advogado de insucesso retumbante, a viver nas traseiras de um salão asiático de beleza. E vai por aí fora. Isto é televisão de qualidade, um digno sucessor de Breaking Bad.   

 


SOUNDCHECK:

«GAGNÉ D’AVANCE» - de Enzo Scifo.

Adoro descobrir estas incursões de antigos futebolistas pelos caminhos da música. Enzo Scifo, um dos melhores belgas de sempre, também arriscou umas cantorias e o resultado é este que se segue.

Scifo foi 84 vezes internacional (18 golos), jogou em bons clubes europeus (Mónaco, Anderlecht, Torino, Inter Milão) e esteve em quatro Campeonatos do Mundo: 1986, 1990, 1994 e 1998.

E não é por cantar da forma que canta que perderei o meu respeito por ele. Foi um grande médio.  

 

PS: «Highway Moon» - dos Best Youth.
O álbum de estreia de Ed Rocha Gonçalves e Catarina Salinas é uma grande notícia para a música portuguesa. Trabalho minucioso de canções pop, inclinação eletrónica, apesar da relevância das guitarras e da percussão.

Há baladas de encantar – Red Diamonds e Rain On the Windshield são maravilhosas – e momentos de aceleração irresistível, a convidar movimentos agitados on the dance floor. É aqui que entram Mirrorball e Ride, por exemplo.

Há muito de Beach House nesta dupla portuguesa. O que mais me agrada? A voz de Catarina, quase sempre sussurrante e insinuante, meiga e atrevida. O caminho para a lua começa aqui.   




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«A Bola Não Entra Por Acaso» - de Ferran Soriano.
   
Os clubes em dificuldades financeiras, os plantéis com salários em atraso, o incumprimento generalizado. O retrato negro do futebol profissional em Portugal. Há boas exceções, talvez até mais do que se quer fazer julgar, mas é impossível pensar num cenário positivo, de competência e boa gestão.

Este livro de um autor espanhol, antigo gestor do Barcelona, pode ser uma boa plataforma para ajudar a reverter o quadro atual. Boas ideias, não só para o mundo do futebol mas, arrisco-me a dizer, para qualquer carreira profissional.

 
 
«PLAY» é um espaço de opinião/sugestão do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Pode indicar-lhe outros filmes, músicas e/ou livros através do e-mail pcunha@mediacapital.pt. Siga-o no Twitter.