«Eu nem quero acreditar, mas ouvi dizer que...» é das piores coisas que existem na língua portuguesa.

Antes de mais porque é fraudulento: se não acredita, não faz sentido perpetuar uma falsidade. Depois, e sobretudo, porque tem implícita uma vertigem pelo drama que não é saudável.

É uma frase que mergulha o ouvinte no pânico: é como se alguém nos estivesse a avisar que o que vem aí é demasiado mau, e ao mesmo tempo está a tirar disso um secreto prazer.

Enfim, Portugal já precisava de passar pelo divã do psicanalista.

Enquanto isso não acontece, vamos continuando a alimentar este entusiasmo pelo dramático: e não necessariamente o de Cascais. Vamos continuando a alimentar esta espécie de fascínio por tudo o que é sofrimento alheio: como se pensássemos que, pela graça de Deus, não sou eu.

Foi impossível para mim não pensar nisto ao ver a última exibição de Ricardo Esgaio.

Imagino que seja muito difícil aceitar um erro de consequências trágicas. Ser adepto, ser um verdadeiro adepto, passa obrigatoriamente por viver o clube à flor da pele: arrebatadora e exageradamente. Como um clube no fundo merece ser vivido.

Por isso é impossível não reagir com um misto de fúria e crueldade àquele erro que atirou o Sporting para o lado de trás do jogo.

Passada a tontura do jogo, porém, nada justifica que o adepto não recupere a racionalidade.

Nessa altura devia perceber que Esgaio não falhou sozinho: falharam, por exemplo, todos os adeptos que tornaram o lateral um jogador muito pior nesta altura do que ele realmente é.

Ricardo Esgaio não é um craque. Nunca será um craque. Tem uma forma de correr que convida à troça: naquele estilo robotizado, de quem conseguiu o que tem porque trabalhou muito para isso. Não tem a elegância de Edwards, o talento de Pote, a capacidade física de Porro.

Mas, caramba!, nós vimo-lo jogar em Braga.

Não é, nem nunca foi um talento, mas sabemos que já foi um lateral muito fiável. Um jogador que corresponde defensivamente e consegue surgir na área contrária a criar desequilíbrios.

Se isso basta para jogar no Sporting? Não sei, Ruben Amorim acha que sim. Mas há uma coisa que sei: em condições normais bastaria para compensar a ausência de Porro sem comprometer. Em condições normais, Esgaio seria um lateral honesto e insuspeito.

Em condições normais, lá está.

O problema é que os adeptos do Sporting criaram um ambiente em torno de Esgaio que não lhe permite jogar em condições normais. Os adeptos tornaram-no num jogador muito pior do que ele é realmente é. Por isso quando ele falhou ontem, e falhou feio, não falhou sozinho: falharam todos aqueles que o atacaram nas redes sociais, todos aqueles que assobiaram quando ele tocou na bola, todos aqueles que criaram um ambiente dramático em torno dele.

Portugal devia ver mesmo essa coisa do divã do psicanalista.

P.S. As declarações de Ruben Amorim no fim do jogo foram corajosas. Tremendamente corajosas. O treinador não foi nada diplomático e, sem atacar os adeptos, deixou bem claro que nesta guerra entre eles e o jogador, está claramente do lado do jogador. Até pode perder as bancadas, mas vai ganhar os atletas. Ontem foi Adán, hoje é Esgaio, amanhã pode ser Ugarte ou Nuno Santos. Os jogadores sabem que, quando realmente precisarem, podem contar com ele: nesta ou em qualquer outra equipa. O que é um sinal que o treinador sabe o que faz. Sempre soube, aliás.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, editor-chefe do Maisfutebol