«Temos de perceber que valores tiramos do futebol de rua. No meu tempo o futebol era numa rua a subir, mas o grande valor era a competitividade, tinha de ganhar. Éramos muitos na rua e tínhamos de ganhar para o próximo jogo, porque senão ficávamos parados muito tempo.»

João Tralhão, treinador dos juniores do Benfica (finalista vencido na Youth League) deixou o alerta no interessante colóquio «Falar de Futebol», realizado por iniciativa de Pedro Barbosa.

Ora Pedro Barbosa começou bem cedo a jogar futebol no Atlético de Rio Tinto, sendo por isso meu eterno rival, já que eu viria mais tarde a jogar no Sport. Mas essa não foi a altura mais feliz da minha breve carreira desportiva.

A minha carreira arrancou bem antes, na rua. Naquele lugar onde tudo fazia sentido e onde éramos senhores de nós mesmos. Livres, agarrados à sensação de eternidade e à certeza de que, se corrêssemos e fintássemos mais que todos os outros, alguém iria reparar em nós.

Aquilo não fazia grande sentido, já que os 'cabritos', as ‘cuecas’ e os ‘bujardos’ tinham como palco as traseiras de um prédio ou um campo de cabras. Ah, o campo de cabras. Era um terreno de sonho, na fronteira entre o relvado e o pelado. Tínhamos de rezar para que os animais não andassem por lá nem tivessem deixado presentes. Mas valia a pena.

Fomos para o campo de cabras quando os senhores do infantário decidiram vedar as traseiras do prédio onde fizemos alguns dos melhores jogos da nossa vida. Relativamente perto, aliás, de onde o Pedro Barbosa cresceu.

O campo das traseiras não era uma rua nem sequer um campo. Mas estava ali à mão, paciente, à nossa espera, naquela mistura explosiva entre cimento e gravilha.

Um miúdo tem de ser apaixonado pelo jogo para se sujeitar às quedas e às pedrinhas que ficavam por baixo da pele levantada das mãos.

Era o futebol de rua no seu estado mais puro. Provavelmente, impossível de manter no contexto atual das cidades. O campo das cabras resistiu à construção massiva mas foi sendo conquistado pelas ervas. Desapareceram os miúdos e, parece-me, também as cabras.

Temos de aceitar essa realidade mas devíamos lutar pelo parente mais próximo do futebol livre: o ringue.

Jogar no ringue de Soutelo foi das melhores experiências da minha vida. Não havia marcações de campo ou contactos infinitos para chegarmos aos dez. Acordava em casa dos primos, ia à janela e sorria. Já andavam uns quantos por lá, ansiosos. Chegavam uns e outros, sem aviso. Aparecia uma bola. Estava feito.

Grandes e pequenos, com ou sem talento (eu era dos mais novos e sem grande talento), todos podiam jogar. Sobretudo quando não havia mais ninguém. Passavam-se horas e horas, discutiam-se faltas, faziam-se debates sobre se a bola entrou ou não, porque havia balizas mas sem redes. Um remate demasiado violento gerava a dúvida.

Tudo se perdeu quando decidiram fazer uma avenida por ali.. Os miúdos de Rio Tinto ficaram sem um campo de sonho e nasceram alguns lugares de estacionamento.



Este cenário propaga-se. Escasseiam os espaços públicos e gratuitos para que os jovens se apaixonem verdadeiramente pelo jogo. Troca-se o futebol de rua pelas academias, pelos escolas dos maiores clubes. Equipamentos, mensalidades, ilusões.

Vejo miúdos nas escolas portuguesas do AC Milan ou do Mónaco a sentirem mesmo que são do AC Milan e do Mónaco. Por vezes, são tão novos que nem defrontam adversários. Concentram-se às dezenas num curto espaço de terreno a dar uns toques. E enquanto passa essa manhã de sábado, lá foram mais 30 euros. 

Hoje em dia, alguns não podem suportar as mensalidades, não conseguem que os pais os levem sempre aos treinos, não se juntam aos dez de cada vez à hora marcada num pavilhão longe de casa. Até porque isso dá trabalho, bem mais que uma consola de jogos.

O caminho é perigoso. Perde-se a noção de dificuldade, a paixão livre pelo futebol, o desporto sem compromisso. Nada será como dantes mas há passos simples a dar. Antes de mais, devolver os ringues de futebol à comunidade. Coloquem-nos no meio de nada, à espera. Os rapazes aparecem, é garantido.

Nem todos serão jogadores de futebol, mas sairão de lá com amor pelo jogo. Serão pelo menos melhores adeptos (e melhores jornalistas desportivos, garantidamente). Até isso é diferente hoje em dia.

Entre Linhas é um espaço de opinião com origem em declarações de treinadores, jogadores e restantes agentes desportivos. Autoria de Vítor Hugo Alvarenga, jornalista do Maisfutebol (valvarenga@mediacapital.pt)