Basta levantar a cabeça e olhar em frente para vislumbrar uma das melhores novidades dos últimos tempos da Liga Portuguesa.

Da janela da redação vejo o Estádio do Bessa.

Na verdade, vejo as traseiras: o bloco de concreto, tijolos e ferro, de costas para o parque de estacionamento.

Subitamente, aqueles 30 mil lugares construídos a propósito do Euro 2004 deixaram de parecer sobredimensionados.

Nas últimas duas jornadas em casa, o Boavista fez uma espécie de milagre de multiplicação dos adeptos.

Depois dos 10 812 na receção ao Belenenses (na 27.ª jornada), no passado domingo bateu-se o recorde de assistência desta época: 16 302 pessoas frente ao Nacional da Madeira.

A título comparativo, é mais do dobro do jogo frente ao Sporting (7 628, na 25.ª) e a segunda maior plateia da 29.ª jornada.

Em luta pela manutenção, a direção do clube e da SAD tomou uma decisão simples e acertada: socorreu-se do público. Abriu mão de alguma receita, abrindo as portas do estádio.

A campanha era atrativa – tinha de o ser para «virar o jogo» nesta fase decisiva: cada associado podia levar consigo até quatro convidados, enquanto os não-sócios sem convite entrariam a troco de um euro.

Assim se começou a encher o Bessa e assim o Boavista venceu dois jogos importantes, deixando a zona de descida a cinco pontos de distância.

Subitamente, havia milhares nas bancadas, um ambiente fervilhante, como que se recuássemos até às equipas de Manuel José e Jaime Pacheco.

Como se em campo ainda se gritasse pelos golos de Ricky e Artur ou se celebrasse o talento de João Vieira Pinto e Nuno Gomes... Como se ainda houvesse a categoria e o pontapé certeiro de Ion Timofte e Erwin Sánchez.

Como se, por magia, o Boavista tivesse voltado a tornar-se num aspirante a Boavistão.

Quase escusado será recordar o passivo gigantesco e a passagem pelo Campeonato de Portugal, recente na memória, para se perceber quanto esta árvore ainda tem para crescer.

Depois da tempestade, é preciso semear para depois colher. Uma das sementes é esta: transformar curiosos em simpatizantes e fazer destes adeptos.

Se há prova que esta iniciativa nos trouxe é a de que existe maior massa crítica do que era visível para os lados do Bessa. Há que chamá-la de volta e encher a casa de gente.

No final do jogo de domingo, o treinador Lito Vidigal sintetizou tudo numa frase: «Só um clube grande é capaz de ter 16 mil adeptos nas bancadas.»

Quando saio da redação e deixo de ter o Bessa defronte, vejo no caminho até casa stencils pintados pelas paredes na cidade. Acompanhado do emblema do clube, sempre a mesma mensagem: «Boavista resiste.»

Se há coisa que a nova direção do clube percebeu sem demoras é que se resiste tanto melhor com mais gente na barricada e que a batalha pela sobrevivência só se ganha cerrando fileiras.

No final de tudo, será tão simples quanto isto: basta olhar em frente e ver as oportunidades que estão para lá do muro.

Há degraus para subir para lá do bloco de betão.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.

(artigo originalmente criado às 23h45 de 16/04/2019)