Sem clamor público e sem um interminável debate nacional: foi assim que ficámos a saber que Dyego Sousa havia sido convocado para a Seleção Nacional.
Nesse aspeto, evoluímos.
Basta lembrar o rasgar de vestes que há pouco mais de uma década provocaram as chamadas de Deco e Pepe.
Enquanto Espanha ou Itália, por exemplo, aproveitavam com pragmatismo e naturalidade talentos brasileiros; por cá, não faltou quem fosse militantemente contra a possibilidade de termos ao serviço da Seleção Nacional dois cidadãos perfeitamente integrados, além de absolutos reforços em termos desportivos.
Houve quem desmerecesse um defesa-central que viria a tornar-se referência no futebol mundial e, antes disso, quem fizesse o mesmo àquele que terá sido o maior talento que evoluiu na Liga Portuguesa nas últimas três décadas – alerto desde já que quem quiser reabrir esta discussão, profundamente subjetiva, terá de responder a esta questão absolutamente objetiva: à volta de que outro craque se construiu uma equipa portuguesa capaz de conquistar de seguida uma Taça UEFA e uma Liga dos Campeões?
Nos casos de Deco e Pepe, a tónica estava, porém, sobretudo na origem de dois jogadores que optaram por representar a seleção do país de acolhimento, apesar de terem categoria e tempo para serem eleitos pelo país que os viu nascer – Deco tinha 25 anos aquando da primeira internacionalização por Portugal (em 2003), Pepe tinha 24 (em 2007).
A condição de ambos torna a opção de cada um ainda mais apreciável. À prova de oportunismo, que neste aspeto das naturalizações me parece o único aspeto criticável.
Felizmente, evoluímos, dizia.
Graças a Deco e Pepe também, mas tantos outros em diferentes modalidades.
Lembro-me do salto qualitativo dado pelo andebol português com Aleksander Donner e com os naturalizados Bolotsky e Tchikoulaev a jogarem na seleção, mas também de Mike Plowden de quinas ao peito no basquetebol. Lembro-me de ter vibrado tanto com as medalhas de Francis Obikwelu como com as de qualquer outro atleta luso. Com essas memórias presentes, sublinho: tem tanto valor um português de nascimento como um português de sentimento.
O Portugal que «deu novos mundos ao mundo», que cobra direitos de autor da miscigenação e que tem a diáspora na sua matriz – com cinco milhões de lusodescendentes espalhados pelo mundo – é tanto maior quanto mais fizer jus à sua história, sem se deixar confinar pelos 92 mil quilómetros quadrados da sua geografia.
Resumindo: não há nada de mais contrário à essência de ser português do que o chauvinismo.
Voltando a Dyego: está por cá há quase uma década e hoje é um dos melhores avançados da Liga. É elegível e é muito útil, cumprindo todos os requisitos, como o selecionador Fernando Santos fez questão de afirmar.
Isso deveria bastar. Ainda assim, há mais uns quantos argumentos para os adeptos do excesso de zelo.
Dyego é Sousa, mas também tem Ferreira no nome. Haverá alcunhas mais portuguesas?
Convence-me a emoção com que este maranhense de São José de Ribamar reage ao ser chamado a representar Portugal (sonho que havia confessado ao Maisfutebol): «Sinto-me português, amo este país.»
Por estes dias, vi nas redes sociais gente decente a socorrer-se do argumento discriminatório do «brasileiro e demasiado velho», aos 29 anos.
Não deixo de me espantar com quem defende uma sociedade que não discrimine em função da origem ou sequer da idade, mas que cai à primeira quando o assunto são futebóis e seleções.
Vi, no entanto, também quem arrumasse o assunto com sintético sarcasmo: «O Dyego nasceu em Leyrya.»
Pois, por mim, é isso mesmo: Dyego é tão português como Rui Patrício – ou «Ruy Patrycyo», se preferirem manter o tom.
Oxalá a Seleção também lhe arranje bons motivos para um dia também ele merecer uma estátua.
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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.