Gosto de quando o desporto se torna numa festa popular itinerante.

Arrepia aquele mar de gente a ver os carros a voar no Salto da Pedra Sentada, ali para os lados de Fafe. Haverá imagem mais espantosa em todo o Mundial de Ralis?

Trocando os carros pelas bicicletas, a Volta impressiona mesmo com a Senhora da Graça e a Torre apinhadas de gente que empurra os ciclistas com gritos e palmas montanha acima.

Talvez seja fraqueza minha, mas eu que na Liga quero o melhor que o futebol moderno pode oferecer, na Taça de Portugal defendo a tradição.

A nossa Taça é uma competição saudavelmente anacrónica, uma festa desportiva popular, cuja grande vantagem é levar a bola a cada palmo do território português – aliás, se essa via tradicionalista não fosse acarinhada, provavelmente o palco da final já não seria o Jamor, que em termos de conforto e de segurança está fora do top-10 dos recintos nacionais.

Taça é ir ao sintético e, mesmo sendo um craque da Liga, «sair de lá como se tivesse levado com um pau». É jogar em campos que têm um murete à volta e um corrimão onde os adeptos se debruçam, ali com os heróis ao alcance da mão.

Sinteticamente, Taça é o Vasco da Gama-Vitória de Guimarães: ver o Vitória chegar à Vidigueira e, depois de dar meia-dúzia, terminar o jogo a tirar fotos em conjunto, seguido de um serão de convívio à mesa entre adeptos minhotos e jogadores do Vasco, ao som do cante alentejano intercalado por cânticos que habitualmente ecoam nas bancadas do Afonso Henriques.

Por outro lado, no caso de Évora é lamentável que a maior cidade alentejana, apesar dos seus 50 mil habitantes, não tenha um recinto condigno para defrontar um grande.

Tão bizarro como ver o Lusitano receber o FC Porto no Restelo, a 130 quilómetros de casa, é assistir à troca do Estádio José Arcanjo, que desde 2004 até ao início desta época serviu de palco a jogos das competições profissionais, pelo Estádio do Algarve, em Loulé, para a receção do Olhanense ao Benfica.

Por parte das entidades encarregadas de organizar a prova, a mudança de palco dos respetivos jogos é justificada pelo facto de ambos serem classificados como de «alto risco», o que faz com que os recintos de Évora e Olhão não cumpram as condições de segurança requeridas.

A decisão está até respaldada pela Lei n.º 39/2009 de Combate à Violência, Racismo e Xenofobia nos Espetáculos Desportivos.

De facto, o artigo 12.º, respetivo à Qualificação dos Espetáculos, define, entre outros considerandos, como de «alto risco» jogos em que «o número de espetadores previstos perfaça 80 % da lotação do recinto desportivo e em que o número provável de adeptos da equipa visitante perfaça 20 % da lotação».

Caso encerrado? Bem, nem por isso. Desde logo porque o jogo do Vitória na Vidigueira até poderia ser enquadrado no mesmo rol.

Porém, bem mais relevante do que isso é o facto de a Lei n.º 39/2009 (clique aqui para consultá-la) definir outras normas de segurança nos recintos desportivos que, pura e simplesmente, não são cumpridas.

No artigo 14.º estabelece-se, por exemplo, as regras para Apoio e Registo (15.º) a Grupos Organizados de Adeptos, definidas e fiscalizadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ).

Entre outras coisas, pode ler-se: «É obrigatório o registo dos grupos organizados de adeptos junto do IPDJ [ponto 1] (…); o incumprimento veda liminarmente a atribuição de qualquer apoio, nomeadamente através da concessão de facilidades de utilização ou cedência de instalações, apoio técnico, financeiro ou material.»

Aliás, o ponto 7 explicita a advertência de que «o incumprimento pode determinar a realização de espetáculos desportivos à porta fechada».

Sabendo que a claque do Lusitano, composta por jovens dos escalões de formação, não pôde exibir tarjas e bandeiras no Restelo por não estar legalizada (uma notícia que passou quase despercebida), pergunto: esta parte em concreto da Lei 39/2009, que condiciona o apoio dos clubes à legalidade das suas claques, tem sido cumprida por todos os clubes na Liga?

Aparentemente, o zelo em aplicar o artigo 12.º, para acomodar a decisão de poupar dois grandes a jogar em recintos modestos, parece contrastar com o descaso ao longo dos anos últimos em aplicar o artigo 14.º da mesma lei.

É, portanto, fundamental esclarecer critérios, para não ficarmos com a sensação de que no futebol português a lei que conta mesmo é a do mais forte.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.