Sábado, 14h30, dérbi do Ruhr.

Há algo de involuntariamente simbólico nisto de o regresso do futebol ter ocorrido no campeonato e no estádio com melhores assistências do futebol mundial.

À hora marcada, a Bundesliga voltou, justamente com a sua maior rivalidade em campo.

Em vez de vibrarmos com os mais de 80 mil adeptos que fazem do Westfalenstadion um caldeirão efervescente de emoções, contemplámos o vazio.

Die Gelbe Wand como que sublinhava da forma mais imponente possível como tudo é diferente. Mesmo sabendo que as portas estariam fechadas, impressiona olhar aquela monumental bancada agora despida de gente.

«Depois da pandemia, nada vai ser como dantes», disseram-nos. Ora, no relvado, Haaland continua a revelar-se um prodígio goleador, houve uma exibição notável do português Raphael Guerreiro e o Dortmund goleou o Schalke, que da pior forma fez jus ao seu 04.

Houve comprimentos com os cotovelos em vez de abraços. Mas a isso habituamo-nos. Difícil é o silêncio. Aquele maldito silêncio que nos permite ouvir o som da chuteira a tocar na bola.

Há algo de involuntariamente simbólico nesta separação forçada entre gente que canta nas bancadas «You’ll Never Walk Alone» e a sua equipa. Aquela bendita equipa que no final cumpriu a tradição, agradecendo para uma bancada repleta de ausentes.

Westfalen é mais do que betão e ferro forjados no coração industrial da Alemanha. É um estádio tão especial que viveu durante décadas sobre uma bomba de 250 quilos lançada pela Royal Air Force durante a II Guerra Mundial e que só viria a ser descoberta e detonada em 2015, em vésperas precisamente de um Dortmund-Schalke.

Apesar do lamento, é inquestionável esta necessidade de jogar sem adeptos, por uma questão de saúde pública.

A reflexão é sobre a absoluta importância daqueles que nada ganham em termos financeiros a troco de uma impagável recompensa emocional. Aqueles que vão ao estádio e que são tidos por vezes quase como descartáveis num futebol cada vez mais mercantilista, virado para as grandes audiências globais.

Esses, que estão no estádio, não são figurantes. São, sim, a essência do futebol, a par dos protagonistas. E o espetáculo tornado indústria precisa desesperadamente de todos para voltar a ser o que foi.

Não critico, só constato: este novo futebol sem adeptos é cerveja morta, é descafeinado em vez de café.

Talvez por efeito da novidade, neste fim-de-semana, oferecendo um espetáculo incomparavelmente mais pobre, a Bundesliga teve o dobro das habituais assistências televisivas na Alemanha. Aliás, essa necessidade legítima de salvar financeiramente o negócio é a força motriz deste retorno do futebol.

Convivamos com o mal menor. Sejamos pragmáticos. O ótimo é inimigo do bom. É melhor este futebol sem alma do que futebol nenhum.

Ainda assim, isto não é bem um regresso.

O futebol só estará de volta quando não houver silêncio e uma parede vazia.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.