Este mundo é, cada vez mais, dos infalíveis. Dos que nunca se enganam, dos que raramente têm dúvidas. Ainda assim, acredito sempre mais em quem, de quando em vez, diz «enganei-me» ou «não sei». Talvez por achar que a incapacidade de reconhecer o erro é indiciadora de alguma fragilidade implícita.

Ora, sobre Moussa Marega, aqui estou eu para me penitenciar: enganei-me. Com fulgor e espalhafato assinaláveis.

«Em termos técnicos, não cumpre os mínimos para jogar no FC Porto», sentenciava eu, todo impante e sem grande contraditório, aos seus primeiros toques na bola.

Daí até colar um prognóstico num post-it na parede da redação com possíveis futuros empréstimos do franco-maliano não passou muito tempo: primeiro Lorient, depois Elche…

[Sim, por vezes, brincamos com esse jogo que é o futebol e com a falibilidade de fazer profecias, imaginem só. Feliz de quem faz jus ao lema de encarar o trabalho com seriedade sem se levar demasiado a sério.]

Já Marega dava nas vistas no Vitória (de Guimarães, para os desconhecidos), na época passada, quando pedi ao Insónias em Carvão (oficiosamente, o maior génio do humor internético) para me enviar uma das t-shirts com a inscrição «No Marega, No Party»: a peça de roupa era singela, mas com aquela invocação irresistível a uma espécie de anti-herói futebolístico.

A verdade é que enquanto ainda envergava à laia de statement irónico essa minha t-shirt na «futebolada» semanal com amigos, já nas bancadas de Alvalade, por exemplo, havia quem enrolasse uma famosa tarja com a inscrição «Mete o Marega». Ou não tivesse Moussa marcado por três vezes ao Sporting, sendo decisivo para os dois empates no campeonato passado (3-3 e 1-1) entre ambas equipas, que se encontram esta quarta-feira à noite para o jogo da jornada 20.

Na temporada passada, em Guimarães, Marega fez 14 golos. Nesta, de regresso ao Porto, já leva 16 e ainda a meio vamos.

Quando há semanas ouvi nas bancadas de Moreira de Cónegos (em jogo da Taça de Portugal) adeptos do FC Porto cantarem «Ó Conceição, mete o Marega», já não encarei o apelo com um sorriso condescendente.

Não é que Marega tenha passado a ser um prodígio de técnica, nem que a sua relação com a bola seja sempre «tu cá, tu lá». Não é que me encha as medidas, como Brahimi, Jonas ou Gelson. No entanto, é notável a forma como este africano de Les Ulis (na cintura metropolitana de Paris) compensa qualquer défice com redobrada força, velocidade e abnegação. Provando que nem só os predestinados podem jogar lá na frente, mostra-se de uma utilidade extrema em boa parte dos jogos.

Marega no relvado é um pouco como Conceição na sala de imprensa: pode por vezes ser áspero, pode por vezes não acertar no alvo, mas todo ele é determinação e energia. Não dribla, vai direto ao assunto.

Vai daí que já ninguém se questione, ao vê-lo titular indiscutível no FC Porto. Vai daí que ninguém se surpreenda quando o vê, com 90 minutos de futebol nas pernas, fazer só mais um pique para esticar o jogo mesmo antes do apito final. Vai daí que eu não me tenha espantado quando o vi, por estes dias, no relvado Dragão a receber o prémio de melhor avançado da Liga do último mês.

Está decidido: assim que terminar este texto, vou sorrateiramente retirar aquele post-it da parede.

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P.S. - Por falar em mea-culpa sobre Marega, há mais quem o devesse fazer, sobre assuntos bem mais sérios. Entendamo-nos: apesar do insulto ignóbil que terá feito, não vejo um racista em Fábio Coentrão. Nem há tampouco aqui uma crítica exclusiva ao comportamento do Sporting. Aliás, apesar de uma evolução assinalável sobre este tema, há em tempos recentes um historial de cânticos e expressões vergonhosas por parte também de adeptos de Benfica e FC Porto, por exemplo, ou até posts desprezíveis de alguém que agora é presidente de uma das maiores Associações de Futebol do país.

No entanto, não se pode empunhar tarjas da UEFA em nome do fair-play e da erradicação do racismo no desporto e, por mero taticismo clubista, descurar a explícita e inequívoca condenação de casos concretos sempre que haja expressões ou atitudes que o evoquem. Um país civilizado exige tolerância zero em relação a este tipo de comportamentos.

Neste caso do aparente insulto de Coentrão a Marega o Sporting só teria duas opções: desmentir que o seu jogador tenha dito aquilo ou condenar o ato publicamente e pedir desculpa. O que fez, ao publicar uma foto de Fábio e William Carvalho abraçados, é somente desviar as atenções. Já passou uma semana, mas nunca é tarde para emendar a mão.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.