Bernardo Silva brincou no Twitter com Benjamin Mendy, seu colega de equipa no Manchester City, ao compará-lo numa foto em criança com um boneco que é a imagem de uma marca de chocolates.

O amigo, que brinca com o tamanho de Bernardo e até já fez uma montagem do craque português no corpo de um duende, respondeu, entre risos, «1-0 para ti. Vais ver…».

Ou seja, não houve qualquer constrangimento entre os dois e ambos têm uma relação de confiança mútua para que nenhum se ofenda com estas trocas de galhardetes.

Ainda assim, soaram as campainhas da brigada do politicamente correto das redes sociais, que não tardou em pegar nos seus archotes e forquilhas para censurar os intervenientes e condenar um potencial insulto que não o era.

Daí até que começassem a surgir notícias de que a Federação Inglesa ia investigar o caso por alegado racismo foi menos do que um fósforo.

Já antes disso, desapontado, Bernardo apagou a publicação e escreveu outra a lamentar que «por estes dias, já não se pode brincar com um amigo».

Tal como nos acidentes de automóvel os primeiros a aparecerem são os orçamentistas e bate-chapas de ocasião, a cada polémica nascida ou não nas redes sociais surgem de baixo das pedras os escanções da ofensa com o seu palato mais ou menos apurado.

Indignados, definem os limites do humor. Com o problema de cada um de nós ter o seu próprio limite e de a paleta de ofensas ser tão diversa quanto os humores de cada interlocutor.

O que está na génese desta polémica é o pecado de Bernardo em brincar com a negritude do seu amigo Mendy, o que no limite poderá valer um castigo ao internacional português. No entanto, fosse o francês campeão do mundo a brincar com a palidez do Bernardo e, mesmo para os indignados militantes, seria rebuscado relacionar isso com racismo.

Ora, é esse double standard perante comportamentos semelhantes que acaba por se tornar numa forma subtil de diferenciar pela cor da pele dois homens que têm a mesma profissão e semelhante estatuto social.

Querer aplicar um estigma histórico-social a uma relação de amizade, mesmo quando exposta no espaço público, é, por si só, uma forma de perpetuação do racismo.

Haverá quem argumente que este tipo de humor poderá produzir uma hipotética normalização de comportamentos racistas.

Ofensas, difamação, discriminação, por palavras e sobretudo por ações, tudo isso está enquadrado em termos legais. Os visados queixam-se, os acusados defendem-se. E bem. Zero tolerância quando o limite da lei é ultrapassado. Funciona assim a vida em sociedade.

Nem deveria ser necessário explicar o abismo entre um episódio destes e, por exemplo, insultos vindos da bancada, como se tem visto nos estádios de futebol. Meter tudo no mesmo saco é reviver em loop a história do «Pedro e do Lobo».

É, portanto, um enorme salto de fé ver numa brincadeira entre Bernardo e Mendy um hipotético foco de normalização do racismo. O que existe, isso sim e acima de tudo, é uma efetiva normalização das relações pessoais. Em público ou não, tenham muitos ou poucos seguidores, há amigos que brincam assim, espantem-se.

Não admirará, porém, que Bernardo deixe nos próximos tempos de se exprimir nas redes sociais – ainda há tempos entrou em despique com o diretor de informação do FC Porto – com a espontaneidade habitual.

Não admirará, por este tipo de episódios, que a gestão da sua comunicação passe a ser feita exclusivamente por funcionários, que se limitam a publicar mensagens anódinas, tipificadas ou de cariz comercial.

Por estes dias, driblar os snowflakes e demais inquisidores dos tempos modernos não é tarefa fácil. Mesmo para um virtuoso que ainda no último sábado meteu o Watford no bolso e fez o primeiro hat-trick da carreira.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.