Quando em outubro de 1982 a revista Placar desafiou jogadores de futebol a partilharem a sua posição política sobre primeiras eleições estaduais na ditadura militar brasileira, Sócrates surpreendeu todos e apresentou um programa de governo.

Educação, saúde, alimentação, habitação e trabalho eram as áreas-chave do projeto político do «Doutor» então publicado.

Sócrates era todo ele inteligência em campo. Só um génio privilegiaria o calcanhar como forma de fintar os adversários – sendo esguio e de pé pequeno, o «Magrão» não podia driblar e rodar com a ginga de outros.

A capacidade intelectual do craque formado em medicina transbordava bem para lá das quatro linhas.

Culto, politizado, em 1984, no fervilhar do movimento «Diretas Já», que reivindicava a alteração constitucional para que a eleição do Presidente da República fosse por eleição popular (acabando com a ditadura), era ele o mais mediático mentor daquele Corinthians que trocou o patrocínio na camisola pela expressão «Democracia Corinthiana» e que entrou em campo com o estandarte «Ganhar ou perder… Mas sempre com democracia».

O compromisso com a causa era tal que numa gigantesca manifestação em São Paulo Sócrates subiu ao palanque para, perante milhão e meio de pessoas, jogar o seu trunfo, numa altura em que os clubes italianos o cobiçavam: «Se o “Sim” nas “Diretas” ganhar… Eu não saio do meu país!»

Lembro-me de Sócrates, falecido em 2011, ao ver por estes dias ídolos do futebol brasileiro declararem o seu explícito apoio ao candidato presidencial Jair Bolsonaro.

É paradoxal ver artistas como Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Cafú ou o futsalista Falcão abraçarem assim o obscurantismo.

Apesar dos mais de 46 por cento na primeira volta, que o deixam muito perto de ser eleito presidente do Brasil, Bolsonaro é um inimigo da democracia.

Não há outro jeito de qualificar o militar na reserva que homenageia torturadores da ditadura militar, como Carlos Alberto Ustra, ou que defende o fuzilamento de adversários políticos – «há que matar uns 30 mil…».

Não há outra forma de definir o seu perfil fascista e o seu discurso racista, misógino e homofóbico. Aliás, Bolsonaro não tem outro, já que, apesar dos mais de 49 milhões de votos conseguidos no passado domingo, não se lhe conhece um programa político digno desse nome.

Mais do que definir essa personagem sinistra, o que lamento é a falta que gente como Sócrates faz ao futebol e à sociedade brasileira.

Por estes dias, enquanto me desiludia com Ronaldinho, passei a admirar um tal de Paulo André.

Sábado, véspera de eleições, o presidente do Atlético Paranaense, Celso Petraglia, declarou o seu apoio a Bolsonaro. À noite, antes da goleada frente ao América Mineiro (4-0), os jogadores atleticanos surgiram em pleno relvado da Arena da Baixada, em Curitiba, com a camisola amarela e a frase usada por partidários do candidato de extrema-direita: «Vamos todos juntos por amor ao Brasil.»

Todos, menos um. Paulo André recusou fazer parte da iniciativa propaganda e perfilou-se diante do público com o casaco de fato de treino do Atlético.

O defesa-central de 35 anos foi dos únicos jogadores do futebol brasileiro a manifestar-se abertamente contra Bolsonaro, tendo assinado inclusivamente o manifesto «Democracia sim».

Com a visibilidade e o peso social que tem, sobretudo no Brasil, ao futebol – tal como à música, ao teatro, ao cinema, ao jornalismo – cabe a sua quota-parte na batalha quotidiana por uma sociedade melhor.

A resistência aos que, servindo-se dela, são de facto inimigos da democracia, joga-se nas ruas, nas praças, mas também nos campos. De futebol também.

Umas vezes, há que vestir a camisola da democracia. Outras, há que recusar envergar a do protofascismo.

Sábado, Paulo André foi o Sócrates possível. Não é tão pouco assim.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.