Se me perguntarem qual o clube que tem mais condições para subir à Primeira Liga e por lá ficar muitos e bons anos, eu respondo: além dos históricos Académica e Leixões, é o Famalicão.

Não que conheça o plantel como a palma da minha mão (embora repare no talento de Rui Costa, jovem avançado emprestado pelo Portimonense). Isso, aliás, é conjuntural para este vaticínio.

O «Fama» combina as duas razões estruturais para singrar futebol nacional: economia e adeptos.

Explico desde já a primeira: Famalicão é o terceiro concelho que mais exporta em Portugal. É uma terra de indústria, de economia real, de fábricas e mais fábricas que produzem bens transacionáveis com que este país vai equilibrando a sua balança comercial.

Quando há uns anos parte significativa das empresas se reconciliou com clube da terra deu-se o primeiro passo para o regresso a um patamar superior. O outro foi dado pela massa adepta, que deixou de estar de costas voltadas com a equipa. De tal forma que o Famalicão é um dos dois clubes na II Liga que ultrapassam a média de dois mil espetadores nos jogos em casa.

Ninguém se espantou quando há um par de semanas o Famalicão voltou a levar largas centenas de adeptos a Alvalade para um jogo da Taça de Portugal. Comboio cheio a uma quinta-feira, embora não com tantas carruagens como aconteceu nas deslocações a Alvalade também para a Taça em 2016/17, numa quarta, ou em 2014/15, numa quinta.

Desta vez – à terceira, portanto – um grupo de adeptos do Famalicão estendeu o seu protesto na bancada: «Tenham mais respeito pelos clubes do Norte e pelos adeptos que trabalham dia a dia em Portugal.»

A tarja, uma reclamação singela contra o dia e hora do jogo, foi imediatamente retirada pelos seguranças do estádio.

Ao ler sobre isso, questiono-me: o que é que leva um cidadão comum (não uma claque, sublinhe-se) a pagar para viajar 700 quilómetros para ser colocado numa espécie de capoeira, vendo o jogo atrás de uma rede, e voltar de madrugada em vésperas de um dia de trabalho?

Escrevo sobre adeptos do Famalicão, como poderia fazer sobre os do Portimonense ou Desportivo de Chaves.

Não discuto aqui calendários, nem os direitos de transmissão televisiva. Não discuto sequer a justiça da crítica. Discuto, sim, o direito de quem de forma ordeira quer mostrar o seu desagrado a poder fazê-lo num espaço de liberdade como historicamente sempre foram os estádios de futebol.

Não os transformemos em recintos sem alma, destinados sobretudo a clientes, meros compradores de merchandising e consumidores de um espetáculo: numa concentração de pipoqueiros, de comedores de cachorros e bebedores de cola.

Um adepto está bem para lá disso e entre os seus direitos como cidadão está a liberdade de se expressar, desde que não ultrapasse a linha vermelha do insulto e da apologia ao ódio – como aconteceu há meses com cânticos grotescos, por exemplo, que aparentemente podem ou não escapar sem castigo consoante o enquadramento legal de quem os profere.

Agora que se alastra pela sociedade uma brigada que faz mira a qualquer opinião fora do tom, impondo a ditadura do politicamente correto; agora que há quem puna com multa inócuos mimos entre adeptos; agora que há até quem sugira uma espécie de índex sobre palavras que a priori podem ou não ser proferidas no espaço público, não caiamos na tentação de tornar os estádios lugares vazios de opinião.

O futebol perde metade do interesse se tornarem os adeptos numa espécie de figurantes de linha branca.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.