«Passo a palavra agora ao nosso convidado Professor Neca para falar sobre alterações climáticas.» Ou: «Esta semana, o Professor Henrique Calisto vai abordar a ascensão económica do Sudoeste Asiático, mas já a seguir a um curto intervalo Toni analisa a questão curda.»

Não se ouve disto nas nossas televisões, pois não?

Na verdade, não se vê em que medida tal opção será mais despropositada do que ceder tempo de antena a rodos a políticos, advogados, empresários, enfim, que peroram de cátedra sobre futebol.

Aliás, Neca até pode falar com propriedade sobre as Maldivas, um dos países mais ameaçados pelas mudanças climáticas, onde foi durante anos selecionador. Poderia até explicar como o arquipélago tem uma ilha destinada apenas ao tratamento e reciclagem do lixo – como dizia, entre outras curiosidades, num recente almoço com jornalistas promovido pelo Boavista.

Por sua vez, Calisto treinou durante uma década no Vietname, antes de experiências na Tailândia e na China, enquanto Toni trabalhou num clube de Tabriz, bem perto do Curdistão iraniano.

Ainda assim, não nos soa a natural, não é?

No entanto, em termos comparativos, é bem mais absurda esta proliferação de tribunos versados no debate parlamentar ou no argumentário jurídico que se dedicam a discutir penáltis e foras de jogo.

É nessa janela mediática, que se foi abrindo aos poucos até ser escancarada, que são forjados os Andrés Venturas deste país.

Vem o assunto a propósito da carta aberta assinada por um grupo restrito de benfiquistas a exortar o clube a demarcar-se do agora deputado recém-eleito para a Assembleia da República.

Por muito ilustres que sejam os seus propósitos, este intento coloca o Benfica quase no papel de vítima, fazendo aparentemente pouco caso do facto de os clubes terem muito que ver com criação desta e de outras personas mediáticas.

Como podem os clubes demarcar-se destes comentadores se muitas vezes existe uma relação umbilical entre criador e criatura?

Venturas e afins são uma fabricação que conta com a sua contribuição ativa; são pontas-de-lança mediáticos prontos a debitar qualquer cartilha – neste caso em concreto, de forma assumida até.

O objetivo é simples: captar tempo de antena e difundir determinada mensagem de modo a influenciar a opinião pública.  

Se há clubes que usam estas personagens, há também algumas delas, um pouco mais espertas, que, assim que entram no circuito, aproveitam a exposição mediática para dela tirarem o devido proveito, usando-a como degrau para dar o salto para outro patamar.

No caso concreto de Ventura, o discurso futeboleiro colado ao emblema, o apoio (por vezes explícito) de algumas figuras encarnadas na sua última candidatura autárquica (aqui o PSD de Passos Coelho também assumirá a sua quota-parte da paternidade) ou o lastro como promotor da candidatura de Luís Filipe Vieira à presidência do Benfica, tornou evidente que o futebol ajudou a promover um candidato da extrema-direita a chegar ao Parlamento.

Mesmo que o atual extremismo de direita português seja mais «facho» de fachada do que fascista na verdadeira aceção da palavra, tal não o torna, ainda assim, menos perigoso para a democracia.

A referida carta aberta seria, no entanto, uma derradeira oportunidade para o Benfica se demarcar publica e inequivocamente de qualquer instrumentalização da sua imagem por parte deste agora deputado.

A forma como, perante a preocupação de tão ilustres adeptos, o clube reagiu, socorrendo-se da resposta mais vaga possível, não deixa de ser reveladora.

Quem lá atrás ajudou a dar o pontapé de saída, agora só quer chutar o assunto para canto.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.