Percorria-se o minuto 51 quando Adriano subiu pela esquerda e deu para Neymar: o brasileiro cruzou de pé esquerdo muito longo. Do outro lado surgiu Dani Alves, recuperou a bola, fletiu ligeiramente para dentro e centrou para o segundo poste.

Neymar permanecia à esquerda, ali a meio caminho entre a linha de grande área e a linha lateral.

O cruzamento de Dani Alves foi aliviado por um defesa, o Barcelona recuperou a bola, Neymar fez uma diagonal que abriu espaço para o lateral, mas Adriano não foi: cruzou outra vez uma bola que se perdeu do outro lado.

Curiosamente, e mais ou menos à mesma hora, em Wolfsburgo o Bayern fazia cinco golos em vinte minutos. Mas isso não tem nada a ver com esta crónica: era apenas o destino a divertir-se num exercício de crueldade.

Importante para esta crónica foram aqueles pouco mais de sessenta segundos em Valladolid. Enquanto os via, não pude deixar de me lembrar de Xavi. O cérebro da melhor equipa da história da minha vida abriu a alma à revista Panenka.

Admirável.

Uma entrevista que só uma certa dose de crueldade pode ser lida como tal: aquilo foi mais do que isso, foi um galanteio entre um homem e uma bola, com declarações apaixonadas e juras de amor.



Entre outras coisas Xavi confessou que quando chegou com onze anos ao Barça a primeira coisa que o colocaram a fazer foi um meiinho: a segunda foi um jogo sem balizas. Não demorou muito a compreender como aquilo tudo fazia sentido.

«Os adeptos do Barça são viciados neste futebol purista. Queremos ver excelentes jogadores, jogadas perfeitas, nem um alívio e nada de abrir na ala e cruzar. Os adeptos com esse futebol não ficariam bem.»

Felizmente para pessoas como Manuel José ou Diogo Valente nem toda a gente pensa como Xavi. O próprio admite que é uma filosofia de um homem: Cruyff, claro está. Uma filosofia que Guardiola soube potenciar num grupo de excecionais jogadores.

Durante quatro anos tudo foi perfeito. O Barcelona entornou o futebol de carinho e encheu o jogo de uma elegância tão pura que era praticamente um pecado de luxúria.

Fartou-se de ganhar e sobretudo fartou-se de encantar.

Cruyff disse um dia que quando uma equipa está a ganhar 4-0 a dez minutos do fim o melhor que pode fazer é atirar um par de vezes ao poste para que o público grite ohhhhhh. «Sempre me encantou o som da bola a bater com força no ferro.»

Ao Barcelona só faltou mesmo isso.

Tudo foi perfeito até ao dia em que num minuto fez três cruzamentos. Pior do que isso: fez três cruzamentos sem critério. Não se tornou uma equipa normal, porque o Barça de Messi, Xavi e Iniesta nunca será normal, mas tornou-se humana.

Até pode voltar a ganhar, e não duvido que o faça, mas perdeu o enamoramento pelo sensualismo. Admitiu que um cruzamento é o caminho mais direto para o golo e tornou-se passível de ser comparável. 

Para amargura de Xavi, provou que afinal o estilo não era inegociável.

Uma vez por outra voltará a arrebatar-nos e nessa altura diremos que parecia o Barça de antigamente. Felizes de nós que o podemos dizer.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dias