As formigas estão para o açúcar como os fontanários estão para as janelas de mercado. Um bago esquecido no armário da despensa chega para formar carreiros mais compridos do que a fila de treinadores do Marítimo nas últimas quatro épocas (foram nove). Por outro lado, um Enzo Fernández cobiçado chega para formar uma multidão mais composta do que a do grupo de fãs do Jovane Cabral (são nove).

As formigas, tal como os fontanários, não vão desaparecer. As primeiras porque é preciso vender mata-moscas e os segundos porque é preciso vender no geral. Assim, da mesma forma que se criaram páginas na internet dedicadas aos truques caseiros para acabar com as formigas, também os clubes, sobretudo os que vendem mais do que compram, devem procurar truques caseiros para mitigar o histerismo que os fontanários podem provocar nos seus simpatizantes.

Vamos a exemplos:

  1. Os simpatizantes do Sporting acordam com a notícia de que o Tottenham está interessado em Pedro Porro, sabendo que, para aquela posição, a alternativa é Ricardo Esgaio;
  2. Os simpatizantes do Sporting acordam com a notícia de que o Tottenham está interessado em Pedro Porro, sabendo que, para aquela posição, há uma opção de crescimento.

Pode estar aqui a diferença entre o princípio de gestação de um novo hooligan do Twitter ou a apreensão de uma premissa simples no futebol português, que é a de que os clubes da Liga Portuguesa, não conseguindo fixar talentos, têm de estar preparados para perdê-los. No Benfica, aconteceu quando saiu Darwin Núñez e Gonçalo Ramos assumiu o lugar; no Sporting, aconteceu quando saiu João Palhinha e Ugarte assumiu o lugar; no FC Porto, aconteceu quando saiu Luis Díaz e Pepê assumiu o lugar. Claro que, dentro deste planeamento, os clubes podem não ser capazes de assegurar o mesmo rendimento desportivo, mas, pelo menos, reforçam a saúde financeira, apresentando provas de que existe projecto.  

Bem sei que os admiradores de banha da cobra se matam por dizer que «o projecto é ganhar», só que o problema desta ideia, além de parecer que saiu da boca de um tubo de escape, é que não acaba em si mesma. Aliás, o caso Enzo Fernández deita-a por terra. O Benfica só perdeu um dos 29 jogos oficiais realizados esta época e não são as vitórias, per se, que diminuem o impacto, caso se confirme a saída do médio argentino. Regressemos aos exemplos:

  1. Os simpatizantes do Benfica acordam com a notícia de que o Chelsea está interessado em Enzo Fernández, sabendo que, para aquela posição, a alternativa é Meïte (não diminui o impacto);
  2. Os simpatizantes do Benfica acordam com a notícia de que o Chelsea está interessado em Enzo Fernández, sabendo que, para aquela posição, a alternativa é Aursnes, que Chiquinho tem sido testado por Roger Schmidt e dado boas indicações e que João Mário, no limite, pode jogar lá (diminui o impacto).

Dir-me-ão que nenhum deles tem o perfil de Enzo. Aceitando, devo acrescentar que não acredito que o clube hipoteque as suas aspirações em qualquer uma das competições em que ainda está envolvido, existindo a alínea b). A equipa estará carente de extremos com as características de David Neres, pese embora, como defendeu Roger Schmidt pós-desaire frente ao SC Braga, já tenha realizado boas exibições com Aursnes e João Mário nas meias esquerda e direita, respectivamente (Benfica-Juventus, 4-3). Mas as soluções para o meio-campo são válidas, mesmo que se possa ter de vir a aceitar a realidade de perder um médio tão completo como Enzo Fernández, que, todavia, somente perante um excelente golpe de mercado veio aterrar na Liga Portuguesa.

Nos antípodas está a possibilidade de Pedro Porro rumar a Inglaterra. Aqui, temo que não se tenha aplicado da melhor forma o remédio para os fontanários, já que Rúben Amorim deixou Gonçalo Esteves nas mãos de Nélson Veríssimo e insistiu num Ricardo Esgaio irreparável, perdendo a hipótese de trabalhar o jovem com potencial, agora inscrito na Liga pelo Sporting, sem ritmo competitivo ou quaisquer rasgos de evolução – uma pedra no sapato de Amorim, que tem sido lesto e coerente na concepção do seu projecto.

Os bons projectos não garantem fotocópias dos talentos vendidos, tão pouco a certeza de que o potencial do substituto se venha a cumprir a curto, médio ou longo prazo. Os bons projectos baseiam-se em previsões e dentro delas existirão alíneas que apontam ao insucesso das mesmas, porque o futebol não é uma ciência que permita perspetivar resultados exactos. Por cada previsão alegadamente fácil há um rol de dúvidas capaz de a contrariar. Quem é que dizia que um miúdo de 19 anos com quatro jogos pela equipa B agarrava o lugar de defesa-central titular do Benfica? E quem é que acreditava que, à 15.ª jornada desta temporada, Iván Marcano estivesse a dar mais garantias do que o jogador mais caro entre clubes da Liga Portuguesa, David Carmo?

Eu nem estou a questionar episódios pontuais, como o golaço de Diogo Gonçalves ao Midtjylland, estou a apontar surpresas que só uma modalidade como o futebol, dada a tamanha aleatoriedade, nos consegue oferecer. No meio do caos, se não tiveres convicções mais consistentes do que “o projecto é ganhar”, acabarás engolido pelas formigas.

«Quem é que defende?» é um espaço de opinião de Sofia Oliveira no Maisfutebol. A autora escreve pelo acordo ortográfico antigo.