A especificidade pode ou não servir de sinónimo para a simplicidade. Em princípio, uma jogada poderá custar-nos horas de debate e um jogo poderá resumir-se em minutos, portanto, não é garantido que seja mais simples analisar um lance do que apresentar traços gerais de uma partida.

Há muitos jogos com pouca história – imaginemos, um jogo de sentido único –, mas com lances ricos para analisar, que suscitam dúvidas e, a partir daí, geram perguntas.

O futebol é um pântano de subjectividade no que concerne à análise, desde logo, porque a avaliação advém da interpretação e cada um terá a sua.

Duas pessoas que olham para a mesma jogada, ou até para o mesmo jogador, poderão tecer considerações distintas, sem que, necessariamente, sejam pessoas tão desiguais quanto o Guardiola e o Simeone.

Outra das falhas prende-se na margem de erro proveniente do desconhecimento face ao que vai na cabeça dos jogadores, já que são raras as vezes em que nos chega o parecer de quem executa. Por muito que estudemos os padrões/dinâmicas de determinada equipa, não faz sentido esquecermo-nos de que estão ali humanos, subjugados à necessidade de tomar decisões, capazes de reagir de forma heterogénea a contextos de jogo bastante semelhantes.

Também fará sentido acrescentar que a análise deverá manter-se imparcial perante o sucesso/insucesso da acção. Isto significa que um passe certo pode não ter sido o melhor passe, um remate de meia distância que se traduz num golo espectacular pode não ter sido a melhor decisão, um drible eficaz pode não ter sido bem-executado do ponto-de-vista técnico e por aí em diante.

Escrutinar acções até à exaustão passa por eliminar as mais iluminadas verborreias da nossa praça. Cuidado, não se babem enquanto leem: «O que interessa é elas entrarem»; «Só contam as que vão lá para dentro»; «Foi golo, não foi? O resto é letra».

A reflexão que se segue não visa analisar a exibição do Paulinho frente ao Midtjylland. É específica e remete ao minuto 34 do encontro. O lance não passou despercebido, pois, no seu seguimento, surge uma boa oportunidade de finalização para o Pedro Gonçalves.

Contudo, antes de a bola chegar ao corredor esquerdo, de onde sai o cruzamento do Nuno Santos para o Pote, há um cruzamento do St. Juste à direita e é esse o momento que vai alimentando o debate no Twitter. Afinal, podia o Paulinho ter feito melhor?

ter feito melhor? A minha resposta rápida é sim. Para os interessados, segue a análise que vai além da resposta rápida. A meu ver, nada simples, por sinal.

Antes de chegarmos ao interior da grande área, há que exaltar o passe do Ugarte, de visão e execução assinaláveis. Com aquele passe, o médio uruguaio eliminou seis jogadores adversários (cinco por mérito e outro sem intenção, que caiu na altura em que tentou alcançar St. Juste na velocidade). Rúben Amorim também quis St. Juste para, no central à direita, ter alguém capaz de ameaçar de trás para a frente em organização ofensiva, seja conduzindo a bola ou atacando o espaço sem ela. Gonçalo Inácio desequilibra através do passe, mas não tem este perfil, nem é tão veloz.

Após passar ao Ugarte, St. Juste ataca imediatamente o espaço onde entrará a bola do colega de equipa 
Os cinco jogadores que o passe do Ugarte eliminou e St. Juste a ganhar a posição, perante a queda do opositor directo

No instante em que St. Juste ganhou a posição, o Sporting passou a ter uma situação de quatro para três dentro da grande área adversária e era aí que se pedia uma boa movimentação dos jogadores sem bola e uma boa decisão por parte de St. Juste, o portador da bola. Antes de iniciar a análise individual, deixo algumas premissas que influenciaram a minha observação:

  1. Pese embora Ruben Amorim peça cada vez mais a participação dos centrais exteriores em organização ofensiva, St. Juste ainda não aparece nessas zonas do terreno com muita frequência, ao longo do jogo;
  2. Da alínea 1) depreende-se que a St. Juste lhe faltam rotinas no último terço, sendo natural que coloque menos qualidade/sensibilidade numa tomada de decisão deste género. Isso influencia, por exemplo, a falta de automatismos relativos às referências zonais dos colegas em situações de cruzamentos (quem é que ataca as zonas pré-definidas), a capacidade de antecipar, através de sinais corporais, as movimentações dos colegas e dos adversários. Resumindo, falta-lhe estar mais à vontade, ali. Na minha opinião, Matheus Reis, sendo lateral de raiz e tendo maior continuidade do que St. Juste, regularmente lesionado, já mostra outro à vontade;
  3. A leitura do lance não me parece óbvia, porque embora haja espaço para colocar a bola entre defesas e guarda-redes, estamos, ao mesmo tempo, num terreno de definição de zonas. Enquanto o St. Juste, que nem costuma definir ali, achou que tinha de colocar a bola entre defesas e guarda-redes, o Paulinho achou que devia atacar a sua zona de finalização pré-definida (primeiro poste). Houve duas interpretações diferentes para o mesmo lance (onde é que já lemos isto?);
  4. Eu estou a escrever isto após olhar para o lance uma centena de vezes, os jogadores têm timings curtíssimos para escolher opções.

Afinal, podia o St. Juste ter feito melhor? Sim, porque:

É visível que, quando ganha a frente do lance, levanta a cabeça, fazendo a leitura do contexto. O problema é que se limita a perscrutar a movimentação do Paulinho, ignorando a possibilidade do passe atrasado para a zona onde surgiu Pedro Gonçalves, completamente solto de marcação;

Pedro Gonçalves solto de marcação no momento em que St. Juste executa o cruzamento

Afinal, podia o Paulinho ter feito melhor? Sim, porque:

Mesmo que se aceite a movimentação para a zona pré-definida, ou seja, para o primeiro poste, não foi suficientemente rápido a ganhar a frente ao adversário, tornando-se inapto enquanto solução ao cruzamento. Fico com a sensação de que Paulinho achou, desde o início, que St. Juste iria procurá-lo na sua zona. Mais um toque por parte do defesa-central do Sporting poderia ser o suficiente para Paulinho ganhar o espaço e poder atacar aquela bola, mas não existiu sinergia;

Afinal, podia o Arthur ter feito melhor? Sim, porque:

Fica para cruzamento atrasado, posicionamento já salvaguardado por Pedro Gonçalves, mas não há ninguém a atacar o segundo poste. Neste caso, dependerá, também, do trabalho de Rúben Amorim. Se há ou não há intenção de atacar o segundo poste. Pode existir e a leitura não ter corrido bem ao jogador ou pode não existir.

Gostava de ouvir Rúben Amorim, que é o único capaz de desfazer todas as dúvidas. De resto, não me parece que Paulinho perca créditos junto do treinador por culpa desta jogada – um dos seus pontos-fortes é adequar os movimentos certos aos vários tipos de lance.