O Real Madrid insistia para que abandonasse a cadeira na bancada e se mudasse para a tribuna. Afinal de contas já não era só uma antiga glória: desde 2015 era também presidente honorário do clube, como Florentino Perez o nomeara, em substituição de Alfredo di Stefano.

Fiel ao carácter humilde e rígido que forjara nas montanhas da Cantábria, Paco Gento raramente o fazia. Preferia manter o ritual de toda a vida. Na companhia da neta, vinha a pé desde casa, ali perto do Bernabéu, e tomava o seu lugar na bancada ao lado dos adeptos.

A mesma bancada onde, há mais de quatro décadas, vivera uma das noites mais tristes.

Tinha vinte anos, cumpria a primeira temporada no Real Madrid, e ficara de fora de um jogo, tomando um lugar entre os adeptos. Foi então que um homem, que não o reconheceu, olhou para o camisola 11 que estava no relvado e pensou que se tratava de Gento.

‘Este Gento é tão mau, faz sempre a mesma coisa’, dizia. ‘Porque é que não o tiram de uma vez? Não sei porque o metem em campo’. O verdadeiro Gento permanecia em silêncio.

«Foi um dos piores dias da minha vida no estádio. Eu estava mesmo ao lado dele. Fui para casa muito triste. Os adeptos achavam que eu era mau mesmo quando não estava a jogar.»

Nessa altura o jovem vivia numa pensão e sentia enormes dificuldades para se ambientar a Madrid. Dizia que era uma cidade demasiado grande para um rapaz da aldeia.

Por isso não tinha feito uma temporada que entusiasmasse os responsáveis merengues e havia quem defendesse que era melhor enviá-lo para um clube mais pequeno. Foi então, quando se negociava uma transferência para o Osasuna, que Di Stefano entrou no escritório.

«Não mexam no Gento. Ele vai continuar aqui e vai aprender. Tem condições inatas.»

O tempo haveria de mostrar que Di Stefano estava correto. Depois disso ficou 18 anos no Real Madrid, até que se retirou. Fez quase 600 jogos com a camisola do clube, marcou 176 golos, ganhou doze títulos e tornou-se o único jogador a conquistar seis Taças dos Campões.

Para um rapaz extremamente tímido, muito simples e até algo fechado, não está nada mal.

Natural da pequena localidade de Guarnizo, no município de Astillero, bem no norte de Espanha, a poucos quilómetros dos Picos da Europa e colado a Santander, Paco Gento deixou de estudar ainda criança, para ajudar os pais lá em casa na lavoura do campo.

Começou a praticar futebol e atletismo no Nuevo Montañes, mas contra a vontade do pai.

«O meu pai, que tinha sido jogador de futebol, médio no Cultural de Guarnizo, não queria que eu o jogasse. Tivemos muitas zangas. Ele queria que eu fosse para o campo ordenhar as vacas e alimentar o gado. Ficava bravo quando ia jogar. Mas eu saía sempre que conseguia.»

Foi precisamente a soma do futebol ao atletismo que haveria de tornar aquele menino num fenómeno mundial. A velocidade pela esquerda e o remate forte fizeram dele um craque.

Depois do Nuevo Montañes passou para o Astillero, no qual aos 14 anos fez nove golos e chamou a atenção do Racing Santander. Deu o salto para o clube grande da região, pelo qual se estreou aos 18 anos na primeira divisão... frente ao Barcelona.  

Os feitos do jovem chegaram aos ouvidos de Álvaro Bustamante, vice-presidente do Real Madrid e cantábrio de origem, que fez o conterrâneo assinar pelo clube.

Em Madrid fez parte de uma das melhores, para muitos provavelmente até a melhor, frente de ataque da história do futebol. Kopa, Rial, Di Stéfano, Puskas e Gento.

Gento e Di Stefano foram, aliás, os primeiros a chegar, Hector Rial juntou-se-lhes um ano depois e dizem que mudou o destino de Gento para sempre. O jovem era, por essa altura, um extremo muito rápido, mas algo trapalhão, que tanto era capaz de sair com a bola pela linha de fundo como correr tão depressa que até a bola ficava para trás. A chegada de Rial, um argentino de fino recorte técnico e grande capacidade de passe, mudou esta narrativa. Os dois formaram uma dupla que fez história: Rial através de lançamentos para o espaço e Gento com saídas rapidíssimas para o ataque.

«Sempre gostei de futebol e aprendia com todos. Se o Di Stéfano desse um toque de calcanhar, eu queria fazer igual. Se Rial me colocasse um passe bem medido, tentava devolver-lhe a bola. Eu era um velocista de origem. Pegava na bola, corria e quando olhava para trás os defesas ainda vinham no meio campo e eu já estava perto da baliza», referiu.

«O que aprendi foi a refrear o meu ímpeto e essa acabou por ser a minha melhor arma. Ia a toda velocidade, de repente pisava na bola, e o defesa passava. Muitas vezes sentia pena deles. Quando começaram a conhecer-me, muitas vezes vieram atrás de mim para me acertar, mas eu era esperto e pulava quando os ouvia, eram como um zumbido no ouvido.»

Ganhou seis Taças do Campeões Europeus, o que significa que só o Real Madrid e o Milan têm mais Orelhudas. Das seis, diz que a terceira foi a que lhe trouxe melhores memórias.

Frente ao Milan, em 1958, foi um golo de Gento que valeu o triunfo no prolongamento.

«Lembro-me que o Di Stéfano me disse que estavam todos mortos e que só eu poderia ganhar aquele jogo. Era verdade que me sentia bem. Uma das minhas melhores virtudes sempre foi a resistência. Aos 107 minutos fiz o golo da vitória.»

Curiosamente pouco tempo antes Rial tinha-lhe dito para deixar as bebidas com gás e para passar a beber apenas água, que isso iria tornar a sua condição física ainda mais forte.

Acabou a carreira no Real Madrid, aos 37 anos, sendo o último jogador daquela frente de ataque mítica a sair. Não deixou, porém, de sentir alguma tristeza pela forma como o fez.

«Santiago Bernabéu decidiu remodelar a equipa, mas ninguém me disse nada. Até que um vice-presidente telefonou para minha casa. Pensava que, como era o capitão, me queria pedir conselhos sobre algum jogador. No entanto, começou a falar sobre a minha carreira, sobre como eu já estava na equipa há 18 anos, sobre meu futuro e como podia continuar ligado ao clube. Enquanto me dizia isto, lembrei-me de Di Stéfano. Pouco a pouco percebi que me estava a dizer que não ia continuar, mas não diretamente», contou mais tarde.

«Até que me ofereceu o cargo de treinador da filial, pagando-me o mesmo que eu ganhava como jogador. No dia da apresentação despedi-me dos colegas. Eles estavam de calções e eu de fato. Foi assim que eu saí.»

Acabou mais tarde por receber imensas distinções e ter três jogos de homenagem. Um deles frente ao Belenenses, no Santiago Bernabéu, no qual fez o último golo com a camisola do Real Madrid. Foi de penálti e o guarda-redes era Félix Mourinho, pai de José Mourinho.

Nesse jogo, pela equipa do Real Madrid jogou um reforço de nome Eusébio. O Pantera Negra foi duas vezes colega de Gento, aliás: nesse jogo de homenagem frente ao Belenenses e na seleção de estrelas da FIFA que em 1963 jogou em Wembley, ambos integrando um ataque de sonho formado por Kopa, Law, Di Stéfano, Eusebio (Puskas) e Gento.

O Vendaval da Cantábria, como ficou conhecido pela sua velocidade, faleceu esta terça-feira, ele que desceu a correr das montanhas para se tornar um herói do futebol e regressar lá acima, ao céu, como uma estrela: a mais simples das estrelas.

«Não sou dos que enche o peito, nunca fui. Sou pouco esticado em altura e em carácter.»