Paredes, Fabril e Sacavenense preparam os respetivos duelos contra os ‘três grandes’ na Taça de Portugal. Ao longo da semana, os protagonistas da prova rainha escrevem na primeira pessoa no Maisfutebol. Como são estes dias para atletas semi-profissionais e para plantéis que andam longe do foco mediático? A essência da Taça de Portugal nas palavras dos candidatos a heróis.

JORGE GAZELA: 27 anos, avançado do União de Paredes

. 19 de novembro de 2020, a dois dias do Paredes-Benfica

«Faltam 48 horas para o jogo e a ansiedade toma conta de nós.
É bom sinal, sabe bem. Ainda bem que escolhi o Paredes este ano, até porque já tinha decidido que esta era uma boa altura para começar a dar outra dimensão ao outro projeto que tenho, fora do futebol. Criei uma marca de roupa em 2013, chamada Unity Portugal, e está na hora de fazer um upgrade. Pretendo criar um site especializado e, a médio prazo, ter uma loja e vender diretamente ao público.

A ideia surgiu-me naturalmente. Sempre gostei de moda e comecei a criar tshirts para eu usar. Só para mim. Os meus amigos começaram a gostar da imagem e senti que tinha algum talento. Uni o interesse pela moda e pelas artes gráficas. Agora só consigo vender as minhas peças online, mas sinto que está na hora de dar um passo em frente. 

Aqui no Paredes só treinamos às 18h30, por isso aproveito o dia para investir neste meu plano b. De manhã treino sempre sozinho, para fazer reforço muscular, pois o ano passado tive uma lesão complicada no Benfica de Castelo Branco e estive quase toda a época parado. Só fiz oito jogos e, quando estava a reaparecer bem, a pandemia cancelou os campeonatos. 

Vou quase sempre a almoçar a casa, em Lousada, e descanso um bocadinho. Depois trabalho no meu projeto com a Unity Portugal e ao fim da tarde sigo para o treino em Paredes. Esta semana, apesar de estar o Benfica do outro lado, não tem sido diferente. Não coloco de lado a possibilidade de continuar no futebol depois de deixar de jogar, mas é bom ter este projeto bem sustentado. Tenho mais tempo, mais cabeça e mais motivação nesta altura. 

Ah, a lesão. Bem, no início parecia uma lesão muscular normal, mas depois tive várias recidivas. Sempre que tentava reintegrar o tempo normal, sentia um pequeno rasgão. Psicologicamente foi doloroso. Acabei por estar vários meses de fora. Voltei, fiz alguns jogos, marquei um golo, três assistências e... acabou tudo. 

Em Paredes está quase tudo pronto. Os novos balneários vão ser estreados no jogo com o Benfica, pois temos utilizado uns pré-fabricados até agora. O relvado tem estado em tratamento, a ser poupado, e acho que vai estar em boas condições. Não existem luxos, mas o Paredes dá tudo o que um jogador precisa. 

Chamo-me Jorge, mas no mundo do futebol todos me tratam por Gazela. A alcunha foi-me colocada quando eu tinha seis anos e jogava futsal no Grupo Musical de Miragaia, o clube da rua onde cresci, no Porto. O meu pai também jogou no Miragaia e corri com ele os campos pelados da AF Porto. Não faltava porradinha. Mas sobre a minha alcunha, a explicação é simples: eu era mais rápido e corria mais do que todos os outros. Eu só queria correr e rematar à baliza. Um grande amigo começou a chamar-me Gazela e pareceu-me bem.

A alcunha 'Gazela' nasceu no Grupo Musical de Miragaia

Quando cheguei ao FC Porto, para os infantis, perguntaram-me o nome e eu respondi logo 'Gazela!'. Era estranho, mas ninguém se esquecia. Fui fazer captações à Constituição num sábado e assinei logo pelo FC Porto no domingo. Eu jogava futsal e ainda ouvi umas 'bocas' do mister Álvaro Silva, um homem que está lá há décadas. Viu-me a dominar uma bola com a sola, como eu fazia no futsal, e ameaçou-me logo: 'se voltares a receber a bola assim, vais correr à volta do campo'. Boas memórias.  

No FC Porto fui colega de equipa do André Gomes, do Gonçalo Paciência e do Fábio Martins, por exemplo. Acabei por ser dispensado para o Padroense no terceiro ano, mas depois os clubes fizeram um protocolo e eu acabei por voltar a estar ligado ao FC Porto e jogar ao lado desses bons amigos. Ainda apanhei o Tozé e o Lupeta no Padrão da Légua. E o André Caio, o guarda-redes, que reencontrei em Castelo Branco. O clube é ótimo, mas o Caio merece mais. 

Aos 20 anos, já nos seniores do Padroense, fiz uma grande temporada e fui contratado pelo Sporting. Nessa temporada fiz 11 golos. Acabámos a jogar com dois avançados e eu era um deles. Como é que o Sporting se interessa por um jogador das distritais da AF Porto? É uma boa pergunta. Uns anos antes eu já tinha ido treinar a Alcochete, convidado pelo Sporting. As coisas correram-me bem, mas depois lesionei-me no Padroense e quase não joguei na fase final. Acabei por não receber mais feedback do Sporting nessa altura.  

Fiquei bem referenciado lá, mas antes até tive várias propostas de clubes da II Liga. Fui ficando no Padroense, até que em 2014 consegui dar esse enorme salto. Pelo que me disseram, os olheiros do Sporting até foram observar outro atleta, mas as coisas saíram-me muito bem e ofereceram-me um contrato válido por cinco temporadas. Foi, aliás, o presidente Bruno de Carvalho que tomou conta do processo de contratação. Senti-me uma escolha pessoal dele. 

Gazela ao lado de Bruno de Carvalho no dia da apresentação no Sporting

Na equipa B joguei 20 minutos na primeira jornada, em Faro, e depois não voltei a sair do banco. Porquê? Costumo dizer que havia competição a mais entre nós. O plantel era muito, muito bom. Para a minha posição havia Podence, Gelson Martins, Iuri Medeiros, o Filipe Chaby também jogava lá... o Ryan Gauld, o Hadi Sacko. Muitos jogadores para poucas posições. Deixei de ter oportunidades, a competição interna era enorme. 

A meio do primeiro ano fui emprestado ao Salgueiros, que na altura disputou a fase de subida no CNS, e achei que era uma boa hipótese para somar minutos. Havia outros clubes da II Liga, mas o Sporting primeiro recusou o meu empréstimo e depois deu o ok, já perto do fim do mercado. 

No verão de 2015 voltei ao Sporting, para fazer a pré-época, e disseram-me que o clube queria 'arrumar a casa'. O treinador era o João de Deus, que é agora adjunto do Jorge Jesus, e ele disse-me que o melhor era eu procurar uma alternativa noutro lado. Isso foi-me dito numa conversa iniciada por mim. Voltei a ir para o Salgueiros, depois de as coisas falharem com um clube da II Liga. Ainda hoje desconheço os motivos. 

Gazela ao lado de Podence na bancada de Alcochete

As pessoas do Sporting telefonaram-me e propuseram-me a rescisão do contrato. Isso aconteceu depois de eu ter feito o primeiro treino no Salgueiros. Sentei-me com eles, falámos e chegámos a acordo. Rescindi contrato quando ainda tinha mais quatro anos de ligação, mas a verdade é que não me sentia jogador do Sporting se andasse lá só a treinar.  

No sábado reencontrarei o João de Deus. Gostei das ideias dele, gostei de trabalhar com ele. Se me perguntarem se gosto dele... não posso dizer que sim, porque não me metia a jogar. Mas foi sincero e direto comigo, foi o melhor para as duas partes. Vou cumprimentá-lo em Paredes, sem problema nenhum. 

Joguei no FC Porto e no Sporting, agora é para eliminar o Benfica. Para mim, Benfica, só o de Castelo Branco. Tive o privilégio de passar pelos dois maiores rivais deles e isso torna este jogo ainda mais especial.  

Fui colega de equipa de muitos craques. Gostaria de destacar a qualidade do Fábio Martins e do Sérgio Oliveira, que sempre foram jogadores acima da média. Joguei com outro fora-de-série: Júlio Santos. Jogou muitos anos no FC Porto, foi meu colega de equipa na Sanjoanense em 2018/19, e sei que terminou agora a carreira. Teve uma grave lesão no joelho e nunca recuperou totalmente. Jogava muito. 

Jorge Gazela assinou cinco anos pelo Sporting em 2014

FOTOS gentilmente cedidas por Jorge Gazela