Cher Ndour estava com a seleção italiana sub-15 quando foi observado num torneio e a possibilidade do Benfica se abriu. Miguel Pinho, hoje empresário do último jogador a estrear-se pela equipa principal dos encarnados, abordou o pai e apresentou-lhe o projeto.

Paco, o pai, escutou atentamente, o filho nem por isso. «Fiquei ali a fingir que estava a ouvir tudo o que me dizia sobre o Benfica: a sua dimensão, a forma como trabalhava com os jovens, etc. Resumindo, eu ouvi-o, mas naquele momento não liguei», recordou no verão do ano passado numa entrevista à Sportweek, revista da Gazzetta dello Sport.

Assim que Miguel Pinho saiu, Cher, o pai, segurança num centro comercial, e a mãe Alice, assistente numa clínica dentária, sentaram-se à mesa e refletiram.

Veio a covid-19, o confinamento e, quando o espaço aéreo foi reaberto, Cher e a família viajaram para Lisboa. «Fui ver a sede do clube, o centro de treinos e a casa onde ainda vivo com o meu pai. A Atalanta e a Juventus têm centro de treino muito bonitos, mas se chegarem ao Benfica percebem logo a diferença. Temos dez campos de treino, oito de relva natural», disse na mesma entrevista.

Com os pais quando assinou contrato com o Benfica

Cher Ndour foi anunciado como reforço do Benfica no final de julho de 2020, alguns dias depois de ter completado 16 anos. «Um dos mais promissores jogadores da sua geração no seu país», anunciaram os encarnados no site oficial sobre o internacional jovem pela squadra azzurra.

«Os primeiros tempos em Lisboa foram duros, mas isso é normal: língua diferente, balneário diferente e colegas mais velhos. Fui logo para os sub-23. No início, olham para nós como um estrangeiro que quer roubar-lhes o lugar. Como é que os fiz mudar de ideias? Se perguntar aos meus colegas qual é a minha principal característica, eles responderão que é a humildade», recordou.

João Nuno Fonseca, que era treinador-adjunto de Luís Castro na equipa sub-23 das águias, recorda os primeiros tempos do jovem futebolista num novo contexto. «Surpreendeu-me a abertura que tinha para aprender e ouvir. Mesmo que não conseguíssemos expressar em palavras, porque ele percebia mal a língua portuguesa, utilizávamos imagens claras relativas à intenção de jogo e ele foi crescendo. Hoje acredito que a aculturação que teve já lhe permita estar num nível de entendimento bastante superior e que lhe permitiu chegar onde já chegou», refere ao Maisfutebol.

Hoje, Cher Ndour não só entende português – teve aulas no Seixal, mas precisou pouco – como o fala de forma praticamente irrepreensível, como foi possível constatar na época passada quando falou aos jornalistas antes da final four da UEFA Youth League, prova que o Benfica venceu com o italiano a fazer um dos golos na vitória por 6-0 sobre o Salzburgo na final.

Recorde de João Félix batido por um profissional precoce

Na reta final da primeira época nas águias, Ndour foi notícia quando a 2 de maio de 2021 tornou-se no mais jovem futebolista a atual pela equipa B do Benfica. Com 16 anos e 279 dias, foi lançado por Nélson Veríssimo diante da Oliveirense e bateu em mais de um mês o anterior registo fixado em setembro de 2016 por João Félix.

Na época seguinte, além de ter participado em toda a campanha que terminou com a inédita conquista da Youth League, esteve – primeiro com Veríssimo e depois com António Oliveira – em 26 jogos (20 como titular) dos bês na II Liga, sedimentando-se aí, ainda com 17 anos, num patamar profissional.

Quem conhece Cher Ndour conta ao Maisfutebol que o jovem futebolista já era profissional antes de o ser no «papel» e que tem uma maturidade acima da média, atestada também pelas escolhas que fez pelo caminho. Com 13 anos, por exemplo, recusou mudar-se para a Juventus, onde o ídolo Paul Pogba está agora e ganhou, antes, estatuto de estrela para depois sair para o Manchester United. «Naquele momento, mais do que mudar-me para um grande clube, onde se pensa praticamente só em ganhar, era importante crescer como jogador. Foi uma escolha minha, assim como quando aos 11 anos decidi mudar-me do Brescia para a Atalanta, que era um clube em crescimento», disse à Sportweek.

Da importância nos bês à confiança de Roger Schmidt num jogador de «interesse nacional»

Nesta temporada, Cher Ndour é o segundo jogador mais utilizado na equipa por Luís Castro – que o recebeu nos sub-23 quando chegou e com quem venceu a Youth League e a Taça Intercontinental sub-20 – e as boas indicações dadas no segundo escalão chamaram a atenção de dois treinadores: primeiro, de Roberto Mancini, que o convocou em dezembro último para um estágio com jogadores considerados de «interesse nacional; depois de Roger Schmidt, que nos últimos tempos passou a chamá-lo com regularidade aos treinos da equipa principal.

No sábado passado teve finalmente a oportunidade de se estrear, diante do V. Guimarães, após já ter ido para o banco de suplentes nos jogos com o Club Brugge (na Luz) e com o Marítimo no Funchal. Depois de António Silva e João Neves, tinha chegado a vez dele.

«É um bom talento e queremos trabalhá-lo para os próximos anos», partilhou o treinador alemão das águias, assumindo por meias-palavras que a intenção passa por renovar-lhe o contrato que termina no verão.

O futuro, acredita o Benfica, passa pela Luz. E João Nuno Fonseca, que diz só ver em Paulo Bernardo um médio com características semelhantes nos quadros dos encarnados, acredita também que pode vir a ser importante. «Sinto que tem todo o potencial para se poder afirmar no Benfica e no futuro poder sair para um campeonato competitivo que o irá tornar ainda mais completo. Agora, tudo dependerá da sua mentalidade e das oportunidades que ele tiver. O que é que mais precisa de trabalhar? Uma boa utilização da estatura que tem no jogo aéreo, seja a nível ofensivo, seja a nível defensivo. Tem de tirar partido dessa imponência e utilizá-la bem para que seja diferenciado no futebol de hoje», destaca.

Após o jogo na Luz, Ndour jantou com a equipa, seguiu para casa, escreveu no Instagram que aquela tinha sido a melhor noite da sua vida e deitou-se sabendo que o dia seguinte começaria cedo: às 11h00 da manhã estava a iniciar novo jogo, no Seixal, pelo Benfica B. Cumpriu os 90 minutos e marcou um dos golos na vitória por 2-0 sobre a Oliveirense.

Ao Maisfutebol contam que, apesar da óbvia felicidade, o estado de alma manteve-se. Porque é assim que ele é: sem extremos emocionais e consciente de que tem de continuar a batalhar sem deslumbramentos. Com 59.374 nas bancadas ou com 481. «A popularidade não me aquece nem arrefece. Não me deixo influenciar pelo que dizem sobre mim para o bem ou para o mal. Quem se deixa influenciar, tem mais facilidade de cair em tentações.»