Quando se junta as palavras Milan e Porto há duas imagens que assaltam a memória: a épica vitória azul e branca em San Siro por 3-2, em novembro de 1996, com dois golos de Mário Jardel e um de Artur, e o histórico conflito entre George Weah e Jorge Costa, também nessa temporada, que acabou com o capitão portista de nariz partido na sala de imprensa do Estádio das Antas.

Ora na véspera do FC Porto voltar a defrontar o Milan, a memória desse conflito histórico, sobre o qual já tanto se disse, torna-se um excelente pretexto para visitar a vida riquíssima de Weah.

Sobretudo porque há uma geração que hoje tem menos de 30 anos e que não terá a perfeita noção do que foi o liberiano: um grandíssimo ponta de lança e um dos melhores jogadores dos anos 90. Uma mistura explosiva de força, técnica e velocidade, que o tornavam muitas vezes imparável.

O golo que marcou no fim de semana antes da vitória do FC Porto em San Siro é um bom exemplo.

Antes disso, porém, antes de se tornar o primeiro, e único, jogador de um país africano a ganhar a Bola de Ouro, George Weah nasceu num contexto muito complicado: cresceu no bairro de lata de Claratown, na zona mais pobre da capital Monróvia, filho de um mecânico e de uma vendedora.

Os pais separaram-se cedo e Weah foi criado pela avó, juntamente com irmãos e primos, num total de treze crianças que a senhora tinha à sua responsabilidade, numa barraca da favela ao pé do mar.

«A vida na Libéria não é fácil. A minha família não tinha nada. Os meus pais não conseguiam nem uma boa refeição para mim. Crescer foi difícil: tive que ir para a rua e lutar», confessou mais tarde, revelando que nessa altura apenas comia frango uma vez por ano: no natal, precisamente.

Por isso, e enquanto era criança, acumulou pequenos biscates. Vendeu donuts, foi telefonista, fez serviços como eletricista. Começou a jogar aos 14 anos em clubes do bairro, estreou-se como sénior no Mighty Barrolle, jogou também no Invincible Eleven e foi campeão nacional em ambos.

O papel de estrela na Libéria valeu-lhe a transferência para o Tonnerre Yaoundé, dos Camarões, o que viria a mudar-lhe a vida para sempre. Nos Camarões conheceu o selecionador Claude Le Roy, que era grande amigo de Arsène Wenger, na altura treinador do Mónaco. Le Roy convencu Wenger a ir ver Weah jogar em Yaoundé, Wenger foi, gostou do que viu e contratou o avançado.

Em 1988, com 22 anos, Weah viajou para o Mónaco. No início ficou a viver em casa de Wenger.

«Foi uma boa experiência, mas não foi fácil. Tinha acabado de chegar da África, não conhecia ninguém e não falava francês, só inglês. Nessa equipa jogava Glenn Hoddle, que veio ter comigo, deixou-me à vontade e foi importante para mim. Wenger também falava inglês, o que ajudou.»

Foram quatro anos no Mónaco, 103 jogos e 47 golos, um prémio de melhor jogador africano do ano, uma Taça de França e uma final da Taça das Taças. O que justificou a mudança para o PSG. Na capita foi campeão, ganhou duas Taças de França, jogou umas meias-finais da Champions, foi o melhor marcador da competição e voltou a ser o melhor jogador africano do ano.

Espalhou magia, como por exemplo neste golo ao Bayern Munique.

Por isso, quando o magnata Silvio Berlusconi precisou de substituir o mítico Van Basten, escolheu Weah. O liberiano viajou então para Milão, para ser a estrela mais cintilante de uma verdadeira constelação: provavelmente a melhor equipa do mundo naquela altura.

Nesta altura convém fazer um parágrafo para recordar, por exemplo, a equipa que jogou nas Antas. Rossi, Panucci, Costacurta, Baresi, Maldini, Desaily, Boban, Davids, Eranio, Weah e Roberto Baggio. De fora ficaram Reiziger, Tassoti, Albertini, Ambrosini, Savicevic, Simone e Dugarry.

Lapidar, portanto.

Nesta equipa de astros, e sob o comando de Fabio Capello, George Weah é campeão italiano no primeiro ano, ganhando a Bola de Ouro e o prémio de melhor jogador para a FIFA. O liberiano torna-se o primeiro, e único até hoje, jogador de um país africano a ganhar estas distinções.

É, portanto, como melhor do mundo em título que Weah defronta o FC Porto na Champions.

Mas este já não é o Milan do ano anterior. Capello tinha saído para o Real Madrid, entrou Oscar Tabarez e a equipa arrastava-se numa crise que acabaria com a eliminação da Liga dos Campeões.

Pelo meio os dois jogos com o FC Porto. Em San Siro, derrota por 3-2, num jogo em que Weah fez um golo e acabou pisado na mão por Jorge Costa. Nas Antas, o empate por 1-1 garante o apuramento do FC Porto e no final, no túnel de acesso aos balneários, Weah agride Jorge Costa.

«Weah era extraordinário, dos melhores jogadores do mundo. Tive de aumentar um bocadinho as minhas doses de agressividade. Ele era forte rápido, era um bicho. Assumo: fui mais agressivo durante o jogo com ele, tinha de ser», confessou anos mais tarde Jorge Costa ao Porto Canal.

«Acaba o jogo, ficamos cinco a dez minutos a festejar no relvado. Fez uma espera por mim de dez minutos. Agrediu-me à covardia. Quando olho para o lado só me lembro da cabeça dele. Se é no campo, perdeu a cabeça. Quem espera cinco a dez minutos é uma ação premeditada.»

Jorge Costa apresenta queixa na polícia, mas Weah nunca é levado a tribunal porque as autoridades judiciais não o conseguem notificar. O liberiano justifica, de resto, que agrediu o central do FC Porto em resposta a insultos racistas, mas a UEFA arquiva a queixa por falta de provas: nem os colegas de equipa ouviram qualquer insulto racista. Por causa dessa falsa acusação, Jorge Costa recusou anos mais tarde um pedido de desculpas do antigo avançado.

Certo é que Weah foi castigado com seis jogos de suspensão e só voltou a jogar a Liga dos Campeões três anos depois.

Curiosamente nesse mesmo ano, a mesma UEFA que o castigou com seis jogos de suspensão lhe atribuiu o prémio fair-play. O que muito revoltou o FC Porto. A verdade é Weah era considerado, por essa altura, um modelo de virtudes. Herói nacional na Libéria, gostava de ajudar os jovens, pagou do próprio bolso as despesas da participação da seleção na CAN-96 e exigiu para renovar contrato com a Diadora que a marca desportiva patrocinasse também a seleção liberiana.

A agressão a Jorge Costa e a acusação de racismo vieram alertar que Weah não era só sol: também tinha sombras. Um alerta que se veio a solidificar mais tarde, quando o avançado teve duas filhas fora do casamento que não apoiou financeiramente ou quando mentiu sobre a formação.

Antes disso, é necessário dizer que Weah jogou mais seis épocas, em clubes como o Milan, em que voltou a ser campeão, o Chelsea, o Manchester City, o Marselha e o Al Jazira.

Pendurou as botas com 37 anos, cinco títulos de campeão, três prémios de jogador africano do ano, uma Bola de Ouro e um prémio de melhor do ano para a FIFA. Foi ainda considerado o melhor jogador africano do século e fez parte cem melhores de todos os tempos para a FIFA.

Uma carreira fantástica, de um avançado sublime, que cresceu a pulso no futebol, vindo de um bairro de lata na Libéria. O carácter humanitário, de resto, levou-o a tornar-se embaixador da UNICEF e das Nações Unidas, antes de ser distinguido com o Arthur Ashe Courage Award.

Faltou-lhe apenas jogar um Mundial, como faltou a outros grandes nomes do futebol, mas convém perceber que a Libéria era nos anos noventa palco das maiores atrocidades e destruída por uma sangrenta guerra civil. Weah chegou a pedir às Nações Unidas que interviessem no país e por isso teve a casa na Monróvia destruída pelos rebeldes e vários familiares feitos reféns.

A guerra civil durou 14 anos e terminou em 2003, depois de cerca de 250 mil pessoas terem sido mortas, milhares terem sido mutiladas ou violadas por exércitos compostos por homens e crianças-soldado e mais de 800 mil terem ficado desalojadas. Uma guerra cruel e sanguinária.

Nessa altura, após o fim da guerra, o antigo miliciano Charles Taylor é feito presidente e Weah recusa-se a viver no país enquanto isso acontecer. Estabelece então morada nos Estados Unidos, na Florida, onde a mulher e os filhos ainda residem, e onde tem vários interesses imobiliários.

Dois anos depois, em 2005, Weah candidata-se a presidente da república. Ele que durante todo o tempo da guerra civil esteve fora do país e distante das atrocidades que eram cometidas.

«Nunca ouvi um liberiano criticar Weah por isso. Pelo contrário, para eles, ele era a única coisa positiva que a Libéria tinha na época: uma história de sucesso que dava uma imagem brilhante, pela primeira vez, do país», referiu Hassan Bility, um ativista de direitos humanos.

Apesar de amado pelo povo, George Weah perde as eleições para Ellen Johnson Sirleaf, que se torna a primeira mulher a ser eleita chefe de Estado em África. Nessa altura, e acusado de não ter formação, Weah garante que é licenciado em gestão desportiva, o que se vem a provar ser falso: a faculdade de que fala nunca foi reconhecida.

A mentira fica-lhe mal e seis anos depois volta a candidatar-se a presidente e volta a perder para Ellen Johnson Sirleaf, que ganha ainda com maior percentagem de votos.

Pelo meio foi para os Estados Unidos tirar uma licenciatura em gestão de empresas pela DeVry University, uma faculdade privada. Em 2014 é eleito senador e prepara-se para as eleições de 2017, que acaba por ganhar, tornando-se a partir de 2018 Presidente da República da Libéria. O que foi recebido com uma enorme festa pelo povo, que sempre viu no antigo jogador um herói.

«Imaginem que vivem num país onde uma pequena elite tem tudo e o resto não tem nada. O nosso presidente vai devolver o poder ao povo», disse ao Le Monde, durante os festejos, uma senhora.

Weah tinha feito campanha a prometer combater a corrupção, reformar economicamente o país e apostar na educação dos jovens. No entanto, três anos depois, os relatórios dizem que ainda pouco mudou.

A corrupção continua em níveis altos e até Weah é acusado de ter aumentado o património pessoal desde que chegou ao poder. A liberdade de imprensa tem sido restringida, as licenças de rádio passaram a ter de ser renovadas todos os anos e um jornalista crítico do governo morreu depois de ter sido agredido à saída de um estádio pelo que dizem ser seguranças de George Weah.

Pelo caminho uma das maiores ambições do povo nunca foi cumprida: os homens da guerra, que causaram as maiores atrocidades, não foram levados perante a justiça.

Pelo contrário. Prince Johnson, conhecido como o senhor da guerra - depois de ter torturado durante doze horas e assassinado em direto na televisão o antigo presidente Samuel Doe em 1990 – continua em liberdade e até é senador do país.

Não foram erigidas estátuas que lembrem os mortos, não foi instituído um feriado de libertação da guerra, não foi criada uma memória coletiva do massacre. Elliot Verdier, jornalista que fotografou a nova Libéria, conta que muitas crianças-soldado se tornaram adultos toxicodependentes e tomaram contas de cemitérios, onde aproveitam as campas para dormir e para se drogarem.

«Numa conversa com duas amigas, uma delas fugia sempre às minhas questões. Passado muito tempo de conversa, quando finalmente se abriu, irrompeu em lágrimas e partilhou ter sido vítima de violação em grupo, o que era muito comum durante a guerra. A amiga dela não tinha ideia de que isso lhe tinha acontecido. As pessoas não falam sobre o trauma», escreveu o jornalista.

É nesta Libéria extremamente pobre e magoada, com taxas altas de corrupção e desnutrição, que Weah tenta alimentar a imagem de herói do povo conquistada nos relvados.

Mas se com a bola no pé foi um predestinado, na cadeira do poder só a história o poderá dizer.