O futebol espanhol está desde quarta-feira a meia-haste: mergulhado em profunda tristeza e desgosto pelo fim anunciado de um jogador especial. Carismático. Fascinante e magnético.

Joaquín Sanchez.

Aos 41 anos, o rapaz que dividia com os dois pais e mais sete irmãos um humilde apartamento de três quartos anunciou ao mundo que se retira do futebol no final desta temporada. Para trás deixa uma carreira de vinte e três anos de futebol sénior, catorze das quais no Betis do seu coração, clube do qual se tornou entretanto o quarto maior acionista.

Por isso não susteve as lágrimas quando recordou o dia que lhe mudou a vida.

Tinha 19 anos, o Betis estava na II Liga e o telefone tocou. Era o treinador Fernando Vasquez, a informá-lo que na nova época faria parte do plantel principal.

«Lembro-me como se fosse hoje do momento em que desliguei o telefone para dizer ao meu pai: Papá, conseguimos, já sou jogador da melhor clube do mundo», recordou.

«Sinto-me feliz, muito feliz, porque não entendo o futebol sem alegria. Nem o futebol, nem a vida, as pessoas já me conhecem. Mas também não concebo esta maneira de viver sem o meu Betis. A minha vida é o Betis, é o que sinto e é o que me demonstram.»

Bem vistas as coisas, Joaquín não teve verdadeiramente uma carreira ao nível de outros grandes jogadores. Jogou no Betis, no Valencia, no Málaga e na Fiorentina. Esteve nos Mundiais 2002 e 2006 e no Euro 2004, mas nunca foi por exemplo campeão nacional e nunca esteve numas meias-finais da Champions. Somou apenas três Taças do Rei para o currículo.

Parece pouco, de facto, mas o sucesso de Joaquín nunca se mediu em troféus. Mediu-se em arte, em paixão e em sorrisos. Em simpatia, generosidade e altruísmo.

Os responsáveis do Betis chegaram a confessar que o clube recebia cerca de quinze pedidos por mês dirigidos a Joaquín. Muitas vezes eram pedidos de ajuda de pessoas doentes, mas também havia solicitações de fotografias e autógrafos, pedidos de vídeos de parabéns para aniversariantes e até convites para casamentos.

O veterano respondia a todos. Enviava autógrafos, gravava vídeos, aparecia a dar uma força. É uma pessoa naturalmente empática e humana.

«Nunca diz que não. Ele tem consciência que é o centro das atenções e atende sempre ao que lhe pedem. Muitas vezes vai a hospitais e já chegou a ir à casa de pessoas que estão acamadas e lhe pedem, sempre sem fazer publicidade, porque sente que a situação o justifica.»

O empresário conta até uma situação que nunca esqueceu.

«Por vezes surgem pedidos estranhos. Lembro-me de uma noiva que se ia casar e contactou-nos a dizer que gostava que o Joaquín fosse o padrinho de casamento. Ela até já tinha convidado o pai para ser o padrinho, mas que ele cedia o lugar se o Joaquín aceitasse.»

O vídeo para Luís Enrique que pôs a Espanha a rir às gargalhadas

Joaquín é assim, tem um magnetismo natural, parece envolvido numa aura que o transformou num dos desportistas mais famosos em Espanha.

«Acho que tem a ver com as minhas características, mas também tem muito a ver com ser o filho mais novo. Crescemos numa família de oito irmãos, todos muito, muito próximos e é claro que poder ajudar sempre que possível ou necessário é algo importante para nós. Sinto-me privilegiado por tudo que a vida me deu. Sinto-me sortudo em todos os sentidos e poder apoiar os outros ajuda-me a sentir-me realizado», explicou um dia Joaquín.

Dentro de campo era um extremo à espanhola de antigamente: rápido, furioso, sempre pronto a ganhar a linha de fundo e a cruzar. Fora do relvado, é um bem disposto, brincalhão, um homem de bem com a vida e que consegue fazer sobressair o melhor das pessoas.

É impossível esquecer, por exemplo, o vídeo que partilhou nas redes sociais dirigido a Luís Enrique, quando pedia ao selecionador nacional para lhe ligar porque tinha duas chamadas perdidas no telemóvel e não sabia se não eram do próprio selecionador a convocá-lo.

«Olá Luis Enrique. Que se passa? Não vi o meu nome na lista e estou preocupado. Ainda por cima tenho duas chamadas perdidas, não sei se és tu. Liga-me por favor. Não vi o meu nome na lista. E, já agora, mais uma coisa: não vi a minha camisola no cabide. Onde está a camisola? O cabide está aqui. Liga-me por favor, estou preocupado.»

A Espanha rompeu numa gargalhada e até a federação espanhola entrou na brincadeira.

Aprendeu a ser brincalhão no bar do pai, a fazer rir os velhotes que jogavam dominó

Mas este foi apenas um exemplo num extenso catálogo de brincadeiras. O bom humor e a capacidade de rir fazem parte da vida de Joaquín desde que era criança, aliás.

Neto de dois homens do mar, nasceu em Puerto de Santa Maria, perto de Cádis, a cem quilómetros de Sevilha. Cresceu numa zona humilde, onde partilhava o apartamento de três quartos: um quarto para os pais, outro para os quatro filhos e outro para as quatro filhas.

O pai tinha um bar na zona ribeirinha da cidade, Joaquín desde pequeno ajudava a servir cafés e cervejas, mas também aproveitava para divertir os velhotes que por lá passavam o dia a jogar cartas e dominó. Dizem que muita gente frequentava o bar só para se rir com o jeito atrevido e malandro de Joaquín e do irmão Ricardo, três anos mais velho do que o benjamim.

«Ele cresceu no bar e sabe conquistar as pessoas. É um brincalhão, sempre foi, distinguia-se do resto da família por isso. Conta uma piada e quem ri primeiro é ele», diz o pai Aurélio.

«Tenho momentos sérios, claro. Mas tento sorrir e aproveitar a vida, ver o lado bom das coisas e colocar sentido de humor em quase tudo», contrapõe Joaquín.

Por isso, e porque soube aproveitar o poder das redes sociais, tornou-se um fenómeno. Juanito jogou com o extremo no Betis e na seleção espanhola, e ainda partilhou com ele casa durante meio ano quando ambos começavam a aparecer na equipa principal do Betis.

«Joaquín é a mesma pessoa que conheci quando tinha 18 anos. Já nessa altura era muito engraçado, fazia os mesmos gracejos e tinha a mesma arte. A grande mudança é que agora explora a sua imagem. Antes já todos conhecíamos o Joaquín, mas a Internet e as redes sociais acabaram por torná-lo uma das pessoas mais populares do desporto espanhol.»

O dia em que disse não ao Chelsea de Mourinho e impediu o pai de ganhar três milhões de euros

É um fenómeno de audiências até fora dos relvados, de resto. Já participou num filme, numa série de televisão e já teve até um programa de entrevistas a grandes figuras da sociedade em canal aberto numa televisão espanhola. O sucesso foi tremendo: a estreia, com uma entrevista a um conhecido chef do país, entrou logo para o pódio dos programas mais vistos do ano.

«Toda a gente conhece Joaquín hoje em dia. Perguntem a uma senhora de oitenta anos que não sabe nada de futebol e ela lhes dirá que de futebol só conhece Joaquín», adiantou Juanito.

Foi este fenómeno que esta semana anunciou que se vai retirar dos relvados e deixou Espanha desanimada. Já ninguém imagina o futebol sem a graciosidade e a gargalhada de Joaquín.

Um menino feito homem, que cresceu com dificuldades e aprendeu a ser feliz com pouco. Ainda hoje, aliás, se emociona ao recordar o padrinho: um tio solteiro, que nunca teve filhos e que sempre pagou tudo o que Joaquín precisava para ser jogador. Foi o padrinho Chino que lhe comprava as chuteiras e que lhe arranjou um exame no Betis quando tinha nove anos.

Já nessa altura era um apaixonado pelo clube. O que nunca mudou.

Por isso um dia recusou uma transferência para o Chelsea de José Mourinho, que lhe iria dar um salário de seis milhões de euros e comissões de três milhões ao pai e a Jorge Mendes.

«A contratação pelo Chelsea estava fechada, eram 36 milhões de euros para o Betis, mais um jogo particular avaliado em três milhões. Ele estava em Madrid e eu liguei-lhe para apanhar o primeiro avião para Sevilha, que tinha de assinar. Respondeu-me que não iria assinar nada, que gostava do Betis, de viver em Sevilha e que sairia de lá. E não assinou», contou o pai.

«Ele tinha a última palavra e decidiu. O presidente Lopera ligou-me completamente louco. Já eu podia ter ganhado uma fortuna, três milhões de euros. Mas ele nunca se moveu por dinheiro. Ganhou muito, é verdade, mas precisou de muitos anos para isso.»

Foram 23 anos de carreira: 23 anos de uma carreira que fica para a história.

Obrigado por tudo, Joaquín.