«Era dos que puxava por nós. Vamos lá, são cinco minutos à Benfica». Conta Eurico Gomes referindo-se a Artur Correia. Foram colegas dos dois lados da segunda circular. Eurico era um miúdo a começar a carreira e Artur, o Ruço, um nome já grande no clube da Luz. Anos mais tarde reencontraram-se em Alvalade e nada mudou. Talvez a expressão, pois a que abre o texto não seria bem recebida de verde e branco vestido. Um pormenor linguístico, claro. A atitude, essa, não muda nunca.
O Ruço partiu esta segunda-feira, aos 66 anos, vítima de um acidente vascular cerebral. Antes, a entrar na casa dos 30, já um problema cardiovascular lhe roubara a carreira e lhe mudara a vida.
«Nestes últimos anos já se via nele uma grande revolta interior em relação à própria vida. Sentia que a vida lhe tinha voltado as costas», conta Toni, em conversa com o Maisfutebol. Também jogaram juntos no Benfica e a amizade durou 40 anos.
O desânimo de Artur Correia é, de certa forma, compreensível. Para além do acidente cardiovascular que ditou o abandono precoce dos relvados, venceu ainda um aneurisma da aorta, acabou por ter uma perna amputada devido a problemas de circulação e, agora, o fatal AVC. Vida madrasta, para alguém que a vivia intensamente.
Lançado na equipa principal da Académica na época de 1969/70, ficaria apenas dois anos em Coimbra. Na temporada seguinte à estreia, a Briosa termina no quinto lugar e Artur Correia recebe um telefonema do clube do coração. Era natural de Lisboa e sócio do Benfica desde sempre.
Foram seis anos de águia ao peito. O Benfica, nesse período, foi cinco vezes campeão, sempre com o Ruço na direita da defesa. Toni traça-lhe o perfil: «Era um lateral que, para a época, interpretava o chamado futebol moderno. Projetava-se muito bem ofensivamente, defendia bem e tinha aquela raça que ficou para a história. Uma determinação, vontade, querer que galvanizava qualquer um. Foi um dos melhores laterais da minha geração.»
Eurico Gomes faz uma descrição semelhante. Compara-o a Maxi Pereira, «passe as diferenças, claro». «Conhece aquela frase: olha para o que eu digo não olhes para o que eu faço? Ele era ao contrário. Era líder pelo exemplo», explica.
«Por cinco contos deixaram o Artur ir para o Sporting…»
A raça era a característica mais visível no futebol de Artur Correia. Como diz Eurico, «era daqueles que ia sempre a morder a língua disputar cada lance.» Não admira, portanto, que tenha conquistado adeptos dos dois lados da segunda circular. Aos seis anos no Benfica, acrescentou-lhe mais três no Sporting, a partir de 1977.
«Enfim. Por cinco contos deixaram sair um jogador como o Artur para o Sporting. Ele era sócio do Benfica quase desde que nasceu e era um jogador à Benfica. Foi para o Sporting e ganhou o respeito e admiração de todos, sempre a jogar daquela forma. Pena que as pessoas do Benfica não tenham percebido que era um erro», lamenta Toni.
Em Alvalade, um ano depois de chegar, reencontrou Eurico Gomes que também fez o mesmo percurso. Estava igual. «Do ponto de vista pessoal e profissional era o mesmo. Ele no Sporting era o mesmo do Benfica. Se calhar o Sporting é que não era o Benfica para ele. Mas conquistou toda a gente, disso não há dúvida», sublinha.
O tal empenho que faz a diferença. «Tinha o sangue puro de jogador de raça, fosse nos jogos ou nos treinos. Isso até nem era muito simpático para os outros porque obrigava-nos a dar tudo sempre. Não era o Ruço a adaptar-se ao grupo, o grupo é que tinha de adaptar-se ao Ruço porque já sabíamos que, com ele, não dava para relaxar. Nem num treino», conta Eurico.
«Estou com pena do Rensenbrink, vou ter de lhe dar umas ripadas»
Fora do campo, Artur Correia era de trato fácil. «Eu sei que na hora da morte todos são os maiores, mas o Artur foi enorme», garante Toni.«A nível pessoal era solidário, tinha um sentido humor bom, era de piada fina como eu costumo dizer. Irradiava alegria até a jogar, o que era contagiante», acrescenta.
Eurico está de acordo: «Ele não enganava ninguém. Tinha muita facilidade em comunicar e como os balneários são convívio, e não guerras, assumia ali um lugar importante. E se no balneário era assim, no campo transformava-se, no bom sentido, num animal feroz. Aí não era muito expressivo, nunca quis ser líder de palavra, era o líder da ação.»
«Tinha aquela raça mas, que me lembre, nunca teve grandes atritos com ninguém», acrescenta o único jogador campeão pelos três grandes em Portugal.
Toni conta que a máxima de Artur era a mesma que ainda hoje se diz muitas vezes dos jogadores mais duros: se passa a bola, não pode passar o jogador. «Ele estava sempre a dizer isso, incorporava mesmo essa mensagem», explica.
«Lembro-me de um jogo, não sei se contra a Holanda ou nas provas europeias, em que ele tinha de marcar o Rensenbrink, que era um craque, e antes do jogo já dizia: ‘estou com pena dele. Vou ter de lhe dar umas ripadas e é uma pena porque ele joga muito’», conta Toni, entre risos.
E Rensenbrink não foi o único, claro: «Ele dava umas porradas, era duro mas leal…Um dia até marcou o Cruyff e lá tinha de ser. Não olhava para a camisola, para quem vinha à frente. Se a bola passava, não passava o jogador.»
Além disso, claro, também brilhava noutras zonas do terreno. Toni lembra um golo que marcou à Noruega no Estádio Nacional. «Um golaço a uns 30 ou 40 metros. Monumental. Inesquecível», conta.
Foi, aliás, o único golo que marcou ao serviço da seleção e na sua penúltima internacionalização. Foi na caminhada para o Europeu de 1980 e Portugal venceu por 3-1.
Veja aqui:
Onde incluir, então, Artur Correia quando se fala dos melhores laterais portugueses? A questão foi feita a Toni que respondeu assim: «Marcou a década de 70 e é, com certeza, um dos grandes valores da história do Benfica e de Portugal.»
«Ombreava com os melhores. Houve outros, claro, mas ele foi dos melhores», completa.
