Do azul do céu de Manchester, ao negro chumbo que tinge os dias no Brasil. Da novidade trazida pela Amazon sobre os segredos do futebol moderno a duas abordagens históricas sobre dois exemplos de ativismo no futebol.

Começamos por All or Nothing, série documental produzida pela Amazon, que nos revela os segredos da superequipa do Manchester City.

E deste sucesso mundial, lançado há um par de meses, seguimos para baixo do equador para, através da música e da literatura recordar Afonsinho e Sócrates.

Estes dois rebeldes dentro de campo têm muito em comum, do perfil revolucionário à carreira na medicina. Por estes dias, o exemplo de ambos, de resistência em campo à ditadura militar, serve de contraponto para a atualidade, dominada nos últimos dias pela eleição de um inimigo da democracia para a presidência do Brasil.

Vale a pena ver, ouvir e ler.

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VER: «ALL OR NOTHING: MANCHESTER CITY»

Género: série de documentário

Produção: Amazon

Realizador: Manuel Huerga

País: Reino Unido

Duração: 50 minutos (x8 episódios)

Bernardo Silva pede o FC Porto no sorteio da Liga dos Campeões: a primeira cena de All or Nothing (Tudo ou nada) parece destinada a captar a atenção do público português.

O documentário de oito episódios produzido pela Amazon abre-nos as portas do Ethiad Campus, do estádio ao magnífico centro de treinos, e permite-nos espreitar os segredos da milionária equipa do Manchester City e acompanhar os sucessos e as desilusões da temporada 2017/18, ao longo de nove meses.

Das palestras de Pep Guardiola às entrevistas exclusivas com os protagonistas, dos treinos até aos bastidores dos jogos: tudo pode ser visto desde o sofá de nossa casa… e com a narração de Sir Ben Kingsley.

Descobrimos desde os métodos mais inovadores para a recuperação de lesões à forma como o plantel tenta ultrapassar uma traumatizante eliminação num jogo de paintball ou até como o tema Wonderwall, do ilustre fã dos citizens Noel Gallagher, se torna praticamente num hino da equipa.

O documentário (que pode ver aqui), estreado a 17 de agosto e disponível em mais de 200 países, conquistou a crítica com o modelo behind the scenes que a Amazon privilegiou nas séries All or Nothing também com os gigantes do futebol americano Dallas Cowboys ou os All Blacks, seleção de râguebi da Nova Zelândia – também estreadas este ano.

Pelo acesso quase livre aos segredos do City a gigante norte-americana terá pago mais de 11 milhões de euros ao City, num acordo bilateral que agastou a Sky Sports detentora dos direitos de transmissão da Premier League.

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OUVIR: «MEIO DE CAMPO»

Autor: Gilberto Gil

Intérpretes: Gilberto Gil / Elis Regina

Género: MPB

País: Brasil

Duração: 4:44 minutos

Médico, futebolista, revolucionário. Podia ser Sócrates, mas é Afonso Celso Reis. Aliás, Afonsinho. O «Prezado Amigo» imortalizado nos versos de Gilberto Gil em «Meio de Campo», tema de abertura do álbum a cidade do Salvador editado em 1973.

Versão ao vivo – por Gilberto Gil

A canção, que por estes dias de convulsão no Brasil merece ser recuperada, é uma homenagem ao médio do Botafogo que, em plena ditadura militar brasileira, lutou contra o poder absoluto das direções dos clubes, tornando-se no primeiro jogador a ser dono do seu passe.

Se tinha barba e era cabeludo como um revolucionário, Afonsinho havia de encarnar esse papel no futebol brasileiro, ao tornar-se, em 1971, numa espécie de Bosman antes do tempo – a Lei Pelé, que viria a regulamentar a situação no Brasil, só surgiria 27 anos depois.

Versão em estúdio – Elis Regina

A história de Afonsinho, que além de futebolista era estudante de medicina e ativista político com simpatias comunistas, viria a servir de argumento para o documentário «Passe Livre», de 1974. Tal como para a canção de Gilberto Gil, mais tarde interpretada também pela inconfundível voz de Elis Regina.

«Prezado amigo Afonsinho

Eu continuo aqui mesmo

Aperfeiçoando o imperfeito

Dando um tempo, dando um jeito

Desprezando a perfeição

Que a perfeição é uma meta

Defendida pelo goleiro

Que joga na seleção

E eu não sou Pelé nem nada

Se muito for, eu sou um Tostão

Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão…»

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LER: «Doctor Sócrates»

Autor: Andrew Dowie

Editora: Simon & Schuster

Género: Biografia

País: Reino Unido

Páginas: 400

De um rebelde do futebol brasileiro para outro. Se Afonsinho ganhou a batalha por ser dono do seu passe, nos anos 70, Sócrates tornou-se, na década seguinte, num símbolo social da oposição democrática brasileira ao regime militar.

Ídolo do Corinthians, referência da seleção brasileira de 1982, o «Magrão», que também viria a enveredar pela medicina depois de pendurar as chuteiras, tornou-se no ideal do futebolista-ativista e o rosto mais mediático da «Democracia Corinthiana», movimento que fazia depender do voto de cada elemento (do diretor ao roupeiro) cada decisão no mais popular clube paulista.

A biografia de Andrew Dowie, britânico radicado no Brasil, que foi lançada em março de 2017 e reeditada já este ano, retrata com detalhe a dimensão histórica do «Doutor», que faleceu em 2011, mas também o lado boémio e pessoal.

A obra de 400 páginas escrita em inglês não foi editada em Portugal, mas pode ser adquirida online por um preço entre os 10 e os 20 euros – conforme seja versão em capa mole ou capa dura.

«Os jogadores atuais são o contrário de Sócrates: ganham muito mais e importam-se muito menos com o sítio de onde vieram», constatou o autor, no que não deixa de ser um convite irresistível para ler a obra.

Sócrates, por sua vez, descrevia-se de forma simples: «Eu bebo, eu fumo, eu penso.»

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«PLATEIA» é um espaço quinzenal de sugestões culturais sobre futebol do jornalista Sérgio Pires. Pode enviar as suas através do e-mail smpires@mediacapital.pt