«A vantagem do jogador, direi tipicamente africano, é que não é caro e geralmente está pronto para a luta. Podemos considerá-lo forte no terreno. Mas o futebol não é só isso, é também técnica, inteligência, disciplina. É preciso tudo. Também são precisos nórdicos. Os nórdicos têm uma ótima mentalidade.»


As palavras são de Willy Sagnol. O treinador do Bordéus, vice-campeão do mundo com a França, falava num debate com leitores do jornal Sud Ouest, sobre a CAN e o facto de poder perder muitos jogadores para a competição africana. Antes, tinha dito que se continuar no cargo tenderá a contratar menos jogadores africanos, porque não quer perdê-los por dois meses de dois em dois anos. Depois disse isto, e desencadeou um debate aceso em França, sobre preconceito e discriminação. 


Pode ver e ouvir aqui as declarações de Sagnol, a partir do minuto 19





Houve todo o tipo de reações. O Bordéus saiu em defesa de Sagnol, a acusar de aproveitamento quem lhe chamou racista, o presidente da Federação francesa também. Em sentido contrário, a associação Licra (Liga internacional contra o racismo e o antisemitismo) anunciou o fim de uma parceria com o Bordéus. E Pape Diouf, ex-presidente do Marselha, apelou mesmo ao boicote da próxima jornada da Liga francesa pelos jogadores africanos.


Lilian Thuram, que foi companheiro de Sagnol numa seleção francesa multicultural e tem um papel ativo na luta contra o racismo e a discriminação, foi claro nas críticas. «É lamentável vê-lo adotar um discurso que deixa entender que falta aos «jogadores africanos» esta ou aquela qualidade. Fechamos as pessoas em caixas em função da sua origem», disse: «Vivemos num país em que há preconceitos e ele reforça-os. Ele jogou com jogadores africanos e pode constatar que havia jogadores inteligentes, disciplinados e bons taticamente. Estou surpreendido e desiludido.»






Wilson Davyes é internacional português de andebol. Ex-jogador do FC Porto, mudou-se esta época para França, onde joga no HBC Nantes. Tem acompanhado toda a polémica em torno das declarações de Sagnol. «Tem sido abordado com grande destaque aqui, até em debates na televisão. O Sagnol é um ex-internacional, treinador do Bordéus, teve muita repercussão», conta ao Maisfutebol, antes de deixar a sua opinião sobre o assunto.


«Como treinador, ele tem todo o direito a escolher os jogadores. Se achar que o facto de serem de países africanos e terem de se ausentar de dois em dois anos é suficiente para não os contratar, é legítimo», observa o jogador português. «Mas depois acho que cai num erro muito grande, que é o de generalizar. Ele jogou com o Henry, o Wiltord, o Patrick Vieira. São jogadores que não têm só aquelas características», insiste, antes de identificar aquele que é para si o ponto central da questão levantada por Sagnol.


«Para mim o mais importante é quando ele diz que o jogador africano é barato. É barato porque o futebol aproveita-se da situação miserável que muitos deles vivem no seu país. O futebol ganha milhões, mas continua a aproveitar-se de muitos destes jovens, oferecendo-lhes contratos miseráveis», diz.


Wilson Davyes resume assim de resto as declarações de Sagnol: «Foi uma generalização básica.» «Não as vejo como racismo», observa, concordando também com a questão, levantada por várias vozes na reação a Sagnol, de que é uma generalização grosseira e fruto de preconceito pôr no mesmo saco jogadores de um continente inteiro, com caraterísticas e vivências culturais muito diferentes. Ou falar também, como fez Sagnol, dos jogadores nórdicos como se fossem todos iguais.


Daúto Faquirá jogou e treinou em Portugal e ultimamente trabalhou em Angola. Também fala desse erro de generalização, enquanto aborda as questões que muitas vezes condicionam os jogadores, em algumas zonas de África.


«Estive no meu trajeto em África. Os jogadores que fazem a sua formação, o seu percurso até à fase de alto rendimento em África, é natural que tragam traços culturais e não tenham uma disciplina tática igual à do futebol europeu. Com o tempo as seleções africanas aproximam-se da cultura ocidental, mas há uma série de problemas políticos, sociais e económicos que África enfrenta», observa, para dar o exemplo: «Eu trabalhei com o Mexer, por exemplo, no Olhanense, e ele trazia alguns traços que refletiam essa diferença de culturas. Na África lusófona não há os níveis de profissionalismo da Europa.»


«Mas quando falamos da chamada África branca, do Magrebe, temos a Argélia, que vimos no Campeonato do Mundo, o Egito, são jogadores completamente diferentes. Eu trabalhei em Angola e vi que o que falta ao jogador angolano é a base, enquadramento técnico e humano. Mas tem muitas coisas boas. Hoje em dia, por exemplo, fala-se muito da questão da falta do futebol de rua, que acaba por robotizar o nosso jogo, e lá subsiste isso», nota.


Há um ponto das palavras de Sagnol que Faquirá questiona com veemência. «Falar de inteligência do jogador africano, ou falta dela, é básico. Não tenho sequer palavras para rebater uma afirmação dessas», diz. «Não se deve generalizar, olhar para as coisas de forma obtusa, é sinal de que não se tem aprendido nada nesta luta, nesta tentativa de acabar com atitudes de discriminação, de preconceito.»


Até porque as palavras de Sagnol, observa Daúto Faquirá, «não são um caso isolado de alguns episódios com contornos racistas, às vezes camuflados». «Temos assistido a tantas manifestações, a tantas campanhas de sensibilização para o racismo, é porque ele existe», constata, reforçando o paradoxo de, neste caso, elas virem de dentro do futebol francês: «Infelizmente, com tanta influência que o jogador africano tem, nomeadamente em França.»


Mas elas são também sinal de uma questão por resolver, nomeadamente em França. À tona no futebol desde a fantástica geração que foi campeã da Europa e do Mundo, que dominou o jogo no final dos anos 90 e início dos anos 2000. Le Pen, recorda Faquirá, questionou aquela seleção multicultural para alimentar o seu discurso populista e anti-emigração: «Dizia que não era francesa.»


Wilson Davyes, a viver em França, reforça a ideia. «A França é um país multicultural. Mas há grandes diferenças entre os franceses «puros» ou os de segunda ou terceira geração», diz.


Mas este não é um problema apenas francês, nota, ele que já foi alvo de atitudes racistas, em Portugal. Foi há dois anos, num jogo entre o FC Porto e o Sp. Horta. Na altura, Davyes denunciou a situação, relatando como, numa disputa com um adversário, este o interpelou nestes termos: «O que queres, preto?» Agora, o andebolista português diz ao Maisfutebol que esse não foi caso isolado: Infelizmente, aconteceu-me não só no desporto mas também no dia a dia. São atitudes que dizem: «Não gosto do teu tom de pele.»


«França e Portugal têm um passado semelhante, colonialista, é o que une os dois países», diz Wilson Davyes, numa observação que levanta algumas questões sobre a ideia que os portugueses gostam de ter de si próprios, de uma cultura tolerante e inclusiva: «Reflete-se, por exemplo, na política. Os políticos com um tom de pele diferente em Portugal foram dois: o Narana Coissoró e agora o António Costa. A França já teve ministros negros, nós nunca tivemos. Nem um chinês, ou um ucraniano.»


A propósito de comparações, há algo em que a França está muito à frente de Portugal, diz um jogador que está a jogar andebol ao mais alto nível num dos campeonatos mais exigentes do desporto. «É um mundo muito diferente. Aqui o andebol é profissional em todos os aspetos, é uma pequena grande diferença», observa. Não apenas por haver mais dinheiro, conclui: «A forma como é visto também, a cultura desportiva dos franceses é completamente diferente da dos portugueses.»