* com Catarina Cardoso e João Franco (imagem) / TVI

Francisco Neto cresceu no campo do Mortágua FC, a ver o irmão Luís jogar e o pai Carlos a dar os treinos. O menino que ainda hoje é conhecido como «Miná» no bairro da Gandarada chegou a sonhar com uma carreira de futebolista, mas assim que atingiu à maioridade começou a ficar mais «desassossegado» com o papel do treinador.

Em 2001 foi desafiado a integrar a estrutura técnica da Associação de Futebol de Viseu, e seis anos depois tornou-se coordenador. Foi por essa via que recebeu o convite para estagiar na seleção de futebol feminino, durante uma edição da Algarve Cup. Foi treinador de guarda-redes a pedido de Mónica Jorge, e a colaboração foi-se prolongando.

Deu nas vistas em 2013, com a segunda melhor nota do curso de nível IV, à frente de Paulo Fonseca ou Sérgio Conceição (apenas superado por Filipe Almeida, adjunto de Vítor Pereira). Logo depois foi surpreendido com um convite para treinar a seleção de Goa nos Jogos da Lusofonia. No primeiro treino só tinha seis bolas e a pausa para hidratação demorou quinze minutos, já que os jogadores tinham de partilhar uma única caneca para beber água.

Foi uma aventura, mas daquelas que marcam positivamente a vida, até porque saiu de lá venerado, com uma medalha de ouro. Um mês depois foi apresentado como novo selecionador da equipa feminina de Portugal.

Poucos dias depois de ter completado quatro anos no cargo, concedeu uma entrevista ao Maisfutebol e à TVI, aqui dividida em três partes. Neste excerto o selecionador fala da reformulação competitiva em Portugal e do aparecimento de referências no feminino.

Que papel teve a adesão à Liga de equipas como o Sporting e o Sp. Braga, e agora a entrada do Benfica, para o segundo escalão, na próxima época?

São estruturas que já são profissionais por si. E ao abraçarem o futebol feminino permitiram que as jogadoras tivessem acesso ao que o masculino também tem. Treinam de manhã e de tarde. Se forem jogar fora, viajam no dia anterior e pernoitam lá. São estas pequenas condições que se têm criado para o futebol feminino. Isto também fez com que outras equipas, não tão profissionais, sentissem necessidade de fazer um «upgrade» nas condições. Não vivemos só do Sporting e do Sp. Braga, mas claro que acabam por ser uma referência ao nível da exigência. Começamos a ter jogadoras que já começam a sonhar em representar esses clubes grandes, tal como no masculino, e essa ambição é boa. Ter referências no feminino é muito positivo.

E como olha para a realidade atual de clubes que durante muito tempo «sustentaram» o futebol feminino?

São clubes que continuam a ter um papel muito importante. Como é lógico tivemos a entrada do Sp. Braga e do Sporting, há dois anos, e isso agitou um pouco os plantéis. Não há muitas jogadoras, e alguns clubes acabaram por ficar sem algumas referências. Mas reorganizaram-se, apostaram na formação, e estão cada vez mais competitivos. Não tenho dúvidas de que, em pouco tempo, também vão estar na luta. São essenciais e devem ter o mesmo peso e importância do que o Sporting e o Sp. Braga. Para mim têm. Dentro das suas condições tentam dar o melhor às jogadoras. Mas claro que se existe apenas um campo para treinar e têm dez escalões, as coisas têm de ser divididas. Mas o que sinto é que esses clubes estão a dar às jogadoras as mesmas condições que dão à equipa masculina, por isso vão ser muito competitivas.

O Benfica não quis entrar logo para a Liga, mas cria agora a equipa, dois anos depois. É sinal de que o futebol feminino está aliciante?

Acho que sim. As razões de não terem entrado antes desconheço. Mas qualquer clube que venha é bem-vindo. E se é um clube com estruturas, e que abraça o futebol feminino com a ambição que o Benfica está a mostrar, ainda melhor. Tem a ver também com esta visibilidade, com o perceber que o futebol feminino pode ser também uma marca do clube….não nos podemos esquecer que já há “Champions” no feminino. Quase todos os grandes clubes europeus têm equipas femininas. Perceberam que o futebol é para todos e que há ali um «target» no qual podem apostar.

Quais podem ser os próximos passos no ajustamento dos quadros competitivos? Futebol de 11 no campeonato sub-19, por exemplo?

Isso é um tema mais da direção, mas sem dúvida que a criação de escalões de formação é algo que queremos. Neste momento temos o campeonato sub-19 em futebol de nove e temos o campeonato juvenil. Queremos aumentar de forma sustentada. O ideal seria que as sub-19 já tivessem futebol de onze, mas temos de olhar para o número de equipas que temos e para o número de praticantes nesse escalão. Não interessa termos 25 equipas em vez de 50 porque metade não tem meninas suficientes. O futebol de nove permite ter um plantel de 13 ou 14 raparigas, e se for futebol de onze isso já pode ser muito curto. As coisas têm de ser sustentadas, mas sabemos para onde queremos ir. E o caminho do futebol feminino tem de passar por vários escalões de formação.

O interesse das raparigas no futebol é cada vez maior? É cada vez mais aliciante?

Acho que sim. Temos a «Festa do futebol feminino», no dia da final da Taça, no Jamor, e constatamos que o número de participantes tem aumentado. Isso é sinal de que o futebol feminino está a chegar a todo o lado. Há quatro anos, se perguntasse à maior parte das jogadoras quais as principais referências, falavam do Ronaldo ou do Messi. Hoje falam da Cláudia Neto, da Ana Borges, da Dolores…Já começam a ter referências no feminino, e isto vai espalhar-se e vai crescer. A federação está a apostar na base, que são as escolas.

Portugal tem o nº1 do futebol mundial e do futsal, e já teve do futebol de praia. Podemos vir a ter a nº1 do futebol feminino?

Acredito que sim…

…Já nesta geração?

Eu gostava. Acho que vamos conseguir chegar lá. É ambicioso, não consigo dizer quando, mas acredito que vamos ter referências mundiais. É algo que está no nosso ADN. É o nosso desporto de eleição. É o futebol que entra pela casa dentro. Felizmente temos o caso da Cláudia (Neto), que há dois anos é nomeada para as melhores jogadoras da FIFA. Tem feito uma carreira muito boa. Temos jogadoras em grandes equipas estrangeiras. Tivemos a Ana (Borges) no Chelsea, tivemos meninas na Alemanha, como a Dolores (Silva). Acredito que, com o tempo, vamos atingir esse patamar. Mas só pode ser atingido se elas forem competitivas ao nível dos clubes e da seleção. É importante estar nas fases finais. Foi com muito orgulho que vimos a Cláudia Neto, no meio de tantas estrelas, ser considerada a melhor jogadora da Algarve Cup. Mas a Cláudia sabe, e transmitiu-o, que não há grandes jogadoras sem grandes equipas. Como não há grandes equipas sem grandes jogadoras. Mas não tenho dúvidas de que, mais cedo ou mais tarde, vamos ter uma nº1 portuguesa. Vamos trabalhar para isso.

Leia também:

«Conquistámos respeito no plano internacional»

«Diferenças? Treinar o Real Madrid também não é treinar o Ac. Viseu»