Por: David Marques

Ainda não são 08h30 e os 15 candidados a árbitros da primeira categoria já estão a postos para iniciar o teste físico no Centro de Alto Rendimento de Rio Maior, local que acolhe a segunda edição da Academia de Arbitragem. É o último dia do curso de formação de elite e 12 deles serão aprovados. Como consequência, vão arbitrar jogos da II Liga na próxima temporada em regime de estágio.

Como numa escola de futebol, onde os jogadores passam por vários escalões até estarem aptos para a prática da alta competição, aqui, a lógica evolutiva não é assim tão diferente. Apresentada em 2013, a Academia de Arbitragem contempla três níveis de formação curricular: inicial, avançada e de elite. O primeiro dá acesso à arbitragem nos campeonatos distritais, o segundo ao campeonato nacional de seniores e o terceiro a jogos do futebol profissional (primeira e segunda ligas).

A ideia da criação de uma academia de arbitragem é antiga. «Por volta de 2000, eu e o Vítor Pereira falávamos sobre essa necessidade», conta Antonino Silva, vice-presidente do Conselho de Arbitragem da FPF e formador nos cursos de formação da academia.

Vítor Pereira começou pensar o modelo em 2002, ano em que deixou a arbitragem e assumiu funções no Instituto do Desporto de Portugal (IDP) como técnico superior de desporto, período durante o qual lidou com a realidades das várias federações desportivas nacionais. «Fui acompanhando os modelos formativos que existiam um pouco por todas as federações. Mais tarde, ainda no IDP, editámos dois livros em três anos: o perfil do árbitro e um estudo sobre a formação de árbitros em Portugal.», recorda o agora presidente do Conselho de Arbitragem. O estudo, que contava com a participação de 49 árbitros provenientes de outras tantas modalidades desportivas de utilidade pública, permitiu concluir que a formação nesta área não era constante.   

 

Mas foi só com a chegada de Vítor Pereira à presidência da Comissão de Arbitragem da Liga, em 2006, que foi criada uma equipa de trabalho composta por cinco pessoas provenientes de várias áreas do conhecimento. «Foi aí que o modelo começou a ser, de algum modo, desenvolvido e em 2009 fizemos uma apresentação onde defendemos dez medidas estruturais para a arbitragem portuguesa.» 

Estar preparado dentro e fora de campo  

Os cursos de formação da Academia de Arbitragem são pluridisciplinares. Para além de atualizados no campo das leis do jogo e regulamentos, os árbitros em formação (66 na formação avançada e 15 em elite) recebem formação em nutrição, treino, traumatologia desportiva, psicologia e pedagogia desportiva, comunicação, entre outras áreas.

«São aulas importantes, até porque o árbitro tem de saber gerir determinadas situações em termos sociais e pessoais. É fundamental estar bem dentro do campo, mas também estar preparado para o que encontra fora dele», explica Pedro Vilaça, árbitro há 15 anos e formando nesta segunda edição da formação de elite. «Antes, só havia um curso inicial de época, em que o árbitro fazia provas físicas e recebia atualizações relativamente às alterações das leis de jogo. E havia um curso intermédio em fevereiro. Só a componente das leis de jogo não era suficiente», reconhece André Narciso, 31 anos e árbitro há 14.

Ao longo da formação, os árbitros são ainda submetidos a provas físicas e teóricas. Outra novidade foi a introdução de um teste de inglês. «Qualquer árbitro que seja proposto à FIFA tem de saber escrever e falar fluentemente inglês», justifica Antonino Silva. O dirigente, que foi árbitro entre 1980 e 1995, explica que muita coisa mudou desde então. «Quando tirei o curso, só havia 25 a 30 horas de formação teórica para começar. Aprendíamos sobre as leis do jogo e não tínhamos sessões práticas nem testes psico-técnicos. E depois comprávamos o equipamento e íamos para o campo.»    

Vítor Pereira considera que, apesar dos progressos verificados na arbitragem nos últimos anos (com a integração de psicólogos, preparadores físicos e técnicos de arbitragem), árbitros como Olegário Benquerença, Pedro Proença, Duarte Gomes ou Jorge de Sousa não tiveram acesso às ferramentas proporcionadas agora pela Academia de Arbitragem. «Até esta geração, que já começa a usufruir deste modelo formativo, foram todos self-made man, tal como se passou comigo. Ao longo da carreira, agimos numa lógica de tentativa e erro. Durante os 23 anos em que fui árbitro, nunca treinei num campo de futebol. Também não havia treinos de tomada de decisão. Todo o treino era feito nos jogos.»

Da base até ao topo

São necessários pelo menos oito anos até que um árbitro português possa atingir a primeira categoria e, assim, dirigir encontros da I Liga. Para chegar a internacional, são precisas mais duas épocas. Trata-se de um processo longo, numa atividade muito atingida pelo abandono precoce. «Queremos evitar que isso aconteça. Curiosamente, já este ano estivemos em várias associações de árbitros, onde nos disseram que nunca tinha havido tanta retenção de árbitros no processo formativo como este ano», sublinha o presidente do Conselho de Arbitragem, que confessa haver falta de árbitros. «Temos cerca de 3 mil em futebol e perto de mil em futsal. Precisávamos de mais mil no futebol e 250 no futsal. A próxima época vai ser orientada para desenvolver o plano nacional de recrutamento e retenção, que vai permitir que trabalhemos com as associações distritais dos nossos colegas do conselho de arbitragem em particular, onde procuraremos encontrar solução feitas à medida de cada uma das realidades locais», explica.

Os cursos de formação da Academia de Arbitragem contemplam um ano de estágio. Durante esse período, os árbitros são permanentemente acompanhados por tutores e pelos coordenadores de estágio (um dirigente do Conselho de Arbitragem), a quem terão de entregar um relatório minucioso no final da época desportiva. Dos 60 (de um total de 66) árbitros aprovados para estágio no curso de formação avançada (que dá acesso ao Campeonato Nacional de Seniores), apenas dez irão manter-se nessa categoria. Na formação de elite, 12 seguem para estágio, onde irão dirigir encontros da II Liga. No final da época, os três melhores serão oficialmente árbitros da primeira categoria, aptos a dirigir jogos do Campeonato Nacional. «A integração tem de ser feita de forma gradual e sustentada. É por isso que não vão estar presentes em jogos da Primeira Liga já esta temporada», justifica Antonino Silva. 


Antonino Silva foi árbitro entre 1980 e 1995

Vítor Pereira faz um balanço positivo do primeiro ano de Academia de Arbitragem, apesar de o modelo formativo ainda estar a ser apurado. «Do ponto de vista programático, o nível de satisfação dos participantes é de 4,48 pontos em cinco e, do ponto de vista da eficácia dos resultados, tivemos entre 96 e 97 por cento de sucesso nos participantes.» Sobre a possibilidade de sair da academia um árbitro ao nível de Pedro Proença, que em 2012 tornou-se no primeiro árbitro na dirigir a final da Liga dos Campeões e do Campeonato da Europa no mesmo ano, o dirigente é claro: «Espero que saiam vários!»

Um dos próximos passos da academia é a internacionalização do curso de nível 3 (elite), que deverá passar a ser ministrado em inglês nos próximos anos. «Queremos formar árbitros estrangeiros nas próximas edições. É um passo importante.»


Oito perguntas a Vítor Pereira

Em que modelo foi inspirada a Academia de Arbitragem?
Foi inspirado num modelo existente no plano nacional de formação de treinadores, que tem quatro níveis. Nós ajustámos a três, que pensamos ser suficientes. Eu próprio tirei os cursos de treinador de primeiro, segundo e terceiro níveis. Achei que tinha um modelo interessante para ser transposto para a arbitragem.

Os árbitros de futebol são melhores do que há dez anos ou 20 anos?
É difícil dizer isso. Diria que estes árbitros têm mais instrumentos do que os da minha geração. Mas os desta geração serão árbitros melhor preparados, com mais instrumentos de análise, com mais conhecimentos de funções complementares à volta da função. O futebol é hoje mais exigente, mais rápido e mais mediático. Por essa via, muito mais sufragado e os árbitros têm dificuldades acrescidas para além do trabalho de campo.

Mas reconhece que os árbitros têm, pelo menos, condições para ser melhores?
Indiscutivelmente. Não tem comparação.

A Academia de Arbitragem foi pensada de modo a incentivar a profissionalização dos árbitros?
Digamos que, não sendo um fim, acaba por ser a consequência natural e lógica de todo o processo. Se eu tenho um modelo formativo que vai acompanhando as várias etapas do futebol, se o caminho em escada é este, o árbitro também traça um cenário profissional que pode começar aos 26, 27 anos e prolongar-se até aos 45 anos ou mais.

Considera que os árbitros têm condições para dirigir jogos mesmo depois dos 45 anos?
Na minha geração, todos os árbitros já tinham condições para fazer mais duas ou três épocas. Agora também. Esse é um cenário que não excluímos num modelo profissional, em que a competência e a experiência são fatores mais importantes do que a juventude.

Que feedback lá de fora tem tido a academia?
Na primeira edição [em 2013] veio cá o Mike Riley [membro do Comité de Arbitragem da FIFA e responsável máximo pelos árbitros da liga inglesa]. Fez um relatório, onde fez rasgados elogios ao modelo, à forma como está concebida a nossa formação e à relação direta entre a teoria e a prática.

Como foi o desempenho dos árbitros que fizeram a formação de elite na temporada passada?
Estiveram todo o tempo muito empenhados e à medida que o tempo foi passando e eles foram tendo noção de que não iam atingir os seus objetivos, continuaram motivados, empenhados, cumprindo com grande dignidade e compromisso todas as atividades que lhes iam sendo colocadas.

Quando vão começar a sair os primeiros árbitros 100 por cento produzidos pela academia?
Diria que estes que já usufruíram dos níveis dois e três, não sendo completamente «made in», porque não fizeram o nível um, já o são parcialmente. Cem por cento, diria que daqui a seis anos, quando chegarem aqui ao nível três já tendo o nível dois. Daqui a seis anos já poderemos claramente comparar árbitros que começaram antes, e que não usufruíram desta formação, com aqueles que foram. E aí podemos perfeitamente estabelecer comparações que serão paradigmáticas das diferenças.

A Academia de Arbitragem é direcionada a árbitros de futebol, de futsal, futebol de praia e também a observadores.

Na próxima época, dois árbitros da formação de elite (em 2013/14) já vão poder dirigir jogos da Primeira Liga.