Houve uma altura em que Kyllian Mbappé era apenas um jogador de futebol: muito promissor, é verdade, grande candidato a futuro melhor do mundo, também é verdade, mas ainda assim apenas um jogador de futebol. Com 23 anos e ainda tanto para crescer.

Até que depois se tornou um assunto de Estado e tudo mudou.

O presidente Emmanuel Macron e o ex-presidente Nicolas Sarkozy vieram a público interceder pela permanência do jovem no PSG, o primeiro até se reuniu com o jogador para lhe transmitir a mensagem que ele era muito importante para a França.

«Nunca imaginei que iria um dia falar com o Presidente da República de França sobre meu futuro ou sobre o futuro da minha carreira. É uma loucura. É realmente uma loucura», contou Mbappé numa entrevista ao New York Times.

«Encontrei-me com ele e ele disse-me: ‘Quero que fiques. Não quero que vás embora agora. És muito importante para o país. Tens tempo para sair, podes ficar mais um pouco’. Claro que quando o Presidente da República vem falar contigo, isso tem influência.»

Apesar de tudo, Macron teve de esperar. A decisão de Mbappé só foi tomada muito depois disso, após Antero Henrique montar uma operação de charme incrivelmente completa, que levou até os pais a Doha durante semanas para lhes apresentar tudo o que a Qatar Sports Investments tinha preparado para transformar o filho em mais do que apenas um futebolista.

Em ano de Mundial no Qatar, Mbappé não era um assunto de Estado apenas em França.

A preocupação de Antero Henrique em convencer os pais tem uma explicação: Mbppé não tem empresário e toma as decisões em conjunto com os progenitores. Eles estão sempre presentes na vida dele: a mãe, por exemplo, acompanha-o nas entrevistas mais importantes.

«Nós sentamo-nos à volta da mesa, conversamos e decidimos tudo em conjunto», admite.

Ora portanto, estava claro naquela altura que a decisão de Mbappé não seria tomada apenas numa perspetiva financeira. O Real Madrid tinha-lhe feito uma proposta que o tornava o jogador mais bem pago da história, pelo que mais milhão ou menos milhão, ficando em França ou mudando-se para Espanha, teria sempre à espera um contrato de valores astronómicos.

O que poderia então fazer a diferença?

Muito simples: poder. Mbappé sempre quis mais do que apenas ser um bom jogador. Um responsável da formação do Mónaco contou que uma vez foi pedido aos miúdos do clube que se desenhassem na capa de uma revista. Enquanto os colegas fizeram montagens na primeira página da Paris Match, da GQ ou da France Football, o adolescente Mbappé colocou-se na capa da americana Time. Com uma manchete que dizia apenas: «El maestro».

«Eu não quero ser apenas aquele rapaz que chuta umas bolas, termina a carreira e vai para o iate contar o dinheiro. Não, eu quero ser mais do que isso. As pessoas podem pensar que é de mais e que eu tenho é que jogar futebol. Mas acho que não. Acho que o mundo mudou.»

Foi por isso que a mãe, Fayza Lamari, passou várias semanas do último ano nos Estados Unidos, a aprender finanças com o conhecido especialista francês Kacy Grine. Mais tarde, Mbappé e Grine lançaram o Zebra Valley, um estúdio de produção televisiva.

Conhecendo esta ambição do jovem jogador, uma ambição que o próprio diz não conhecer limites, o PSG preparou um plano: torná-lo o primeiro entre iguais.  O que num clube que tem Neymar e, sobretudo, Lionel Messi, consegue ser uma proposta irresistível.

Por isso, quando foi anunciada a renovação de contrato, o mundo abriu a boca de espanto. Naquela altura todos esperavam que o avançado fosse anunciado a qualquer altura como reforço do Real Madrid. O próprio revelou que um dos principais patrocinadores, a EA Sports, já tinha preparado uma nova capa do FIFA22 com a camisola do Real Madrid.

O certo é que, desde então, tem-se percebido que Mbappé não é um jogador igual aos outros.

Ele diz que não, que não tem nenhum poder fora de campo e que é «profundamente irritante» ouvir as pessoas insinuar isso. Mas a verdade é que todas as decisões no clube parecem ser feitas para lhe agradar.

A entrada do amigo Luís Campos para uma espécie de diretor desportivo, por exemplo. A recente nomeação para diretor de comunicação de um jornalista da Téléfoot que a imprensa francesa diz ser próximo da família Mbappé há muitos anos. Ou até as declarações de Galtier no início da época a entregar ao francês a responsabilidade de bater os penáltis.

Dentro de campo, de resto, o comportamento do francês combina perfeitamente com este novo estatuto de primeiro entre iguais. Há, aliás, vários episódios a comprová-lo.

Vamos por partes.

A birra quando Vitinha não lhe passou uma bola, virando totalmente as costas ao jogo:

A conversa com Hakimi a exigir que lhe desse bolas, em vez de pedir desculpas:

O remate em Turim às malhas laterais em vez de assistir Neymar em frente ao golo:

Os números desta temporada são aliás reveladores. Mbappé soma dez jogos pelo PSG, tendo já marcado onze golos. Já em relação a assistências... zero. Na época passada, antes de renovar contrato com todas as mordomias, realizou 26 assistências em 46 jogos.

Uma estatística revelada na última semana em França é também muito curiosa. Messi já fez cinco assistências para golos de Mbappé e três para Neymar. Neymar, por outro lado, já fez três assistências para golos de Mbappé e duas para Messi. Já Mbappé fez zero assistências para Neymar e zero assistências para Messi.

Provavelmente por isso é indisfarçável que o ambiente no seio do PSG, que nunca pareceu verdadeiramente fraternal, surja nos últimos tempos envolto num suposto mal-estar.

Sobretudo de Neymar, que no episódio que passou à história como penaltygate não escondeu a insatisfação. Começou por colocar likes em comentários nas redes sociais a criticar Mbappé e mais recentemente abandonou uma zona mista quando lhe perguntaram pelo francês.

Indiferente a isso, Mbappé segue o caminho dele. Até porque tem a cobertura total no clube.

«A verdade é que a sua renovação surpresa foi uma grande felicidade e um grande orgulho em maio. Sobretudo nas duas últimas épocas, Mbappé foi o jogador-chave do PSG. Neymar não estava a cem por cento como parece estar hoje e Messi nem estava em boa forma, nem integrado», diz ao Maisfutebol José Barroso, jornalista do L’Équipe.

«Por isso era muito importante para os adeptos e para o dono do PSG que ele ficasse no clube. Do ponto de vista do dono no Qatar, é certo que ele tem um estatuto especial. Porque representa o futuro, será um dos grandes fora-de-classe nos próximos oito anos, nasceu em Paris, enfim. Era muito importante renovar com ele e fizeram tudo para isso.»

Mas não é só o dono do PSG que coloca Mbappé num patamar superior a todos os outros. Também os adeptos do clube olham para o jogador, um francês numa equipa cheia de estrangeiros, que nos últimos anos foi o melhor da equipa, com um carinho particular.

«Os adeptos gostam dele. É verdade que por vezes tem um comportamento que alguns veem como um pouco arrogante, mas é um jogador que não se esconde. Viu-se isso no último sábado, com o Nice. Quando entra em campo, traz movimento, profundidade, audácia. Comete erros, sim, e muitos, pode ser individualista em algumas ações, mas joga sempre bem.»

Provavelmente por isso, não é só no PSG que Mbappé tem um estatuto especial.

Também na seleção francesa o avançado é o primeiro entre iguais, como aliás se viu na polémica recente com a Federação.

Mbappé, tal como já tinha feito no passado Pogba, manifestou-se contra o acordo, em vigor desde 2010, que existe entre a Federação e os atletas para utilização dos direitos de imagem.

O avançado já em março tinha torcido o nariz a um compromisso da seleção com um patrocinador e agora em setembro tomou uma posição de força: recusou participar numa sessão fotográfica da equipa nacional enquanto o acordo não fosse revisto.

Ora a Federação, que sempre tinha recusado alterar o contrato existente, não conseguiu desta vez ignorar o peso de um jogador que é a cara do futebol francês.

Inicialmente disse que iria rever o acordo após o Mundial do Qatar, o que não foi suficiente. Mais tarde emitiu um comunicado a afirmar que já estava em conversas com representantes dos jogadores para fazer essa alteração com a maior brevidade possível.

E então, sim, Mbappé aceitou participar na sessão fotográfica. O que acaba por ser uma demonstração cabal do peso que o avançado tem no futebol francês. 

Esse deve ser, porém, o preço a pagar quando se transforma um jogador em assunto de Estado. Ou melhor, de dois Estados.