Por David Marques

Ainda se lembra dos pelados na I Divisão? Provavelmente já não. Corria o ano de 1982 quando a Federação Portuguesa de Futebol emitiu uma norma que obrigava todos os clubes do principal escalão do futebol português a transitarem definitivamente dos pelados para o relvado no prazo máximo de duas épocas desportivas.

A partir da temporada de 1984/85, todos os encontros da I Divisão Nacional teriam de ser disputados em relva. Natural, claro está, porque as modernices do sintético ainda não eram para aqui chamadas.

O último resistente foi o Estádio Engenheiro Vidal Pinheiro. A 13 de Maio de 1984, num Salgueiros-Boavista, cumpriu-se o último jogo da história da primeira divisão disputado em pelado. Era o fim das tardes poeirentas de futebol na Liga Portuguesa. Para sempre.

No próximo domingo, pelas 19h30, volta a fazer-se história. Pela primeira vez desde aquela tarde de Maio de 1984, um jogo da I Liga vai ser disputado sobre uma superfície que não a de relva natural, desta vez entre Boavista e Benfica.

Uma situação que não agrada a Jorge Jesus. «Não percebo muito bem como é que em Portugal há campos sintéticos: não há neve nem muita chuva. O ritmo é diferente, tudo piora num sintético. Mas, seja num pelado, num sintético ou em alcatrão, teremos de estar preparados para ganhar», disse após a vitória do Benfica sobre o Paços de Ferreira, em jogo da primeira jornada do campeonato nacional.

Jogadores em ação num Boavista-Sporting B na pré-época. «Leões» venceram por 3-1

Mas há assim tantas diferenças entre jogar em sintético e em relva natural? «É claro que sim! Não há nenhuma superfície tão boa para jogar futebol quanto o relvado natural, quando ele é perfeito. Quando não é, o sintético tem performances muito mais estáveis ao nível da absorção de impacto, de recuperação de energia. Para além disso, não tem buracos e, por isso, a bola tem um ressalto homogéneo», explica ao Maisfutebol Jorge Prazeres, administrador da Playpiso, empresa nacional responsável pela instalação de cerca de 300 campos de relva sintética na Europa e em África.

Jorge Prazeres trabalhou com o técnico do Benfica no V. Setúbal, altura em que já sabia que ele não era um particular admirador deste tipo de pisos. «O Jesus é profundamente anti-relvados sintéticos. E os naturais têm de ser perfeitos», revela.

«Relvado do Bessa vai estar em perfeitas condições»

A substituição do relvado natural pela superfície sintética decorreu em 2009 e foi realizada pela Global Stadium. Recentemente, o piso foi submetido a uma profunda operação de manutenção, de modo a serem recuperadas as suas características iniciais.

Em conversa com o Maisfutebol, Luís Botas, responsável pela empresa, garante que o palco do Bessa vai estar em perfeitas condições para o jogo de domingo. E acrescenta: «Respeito a opinião de Jorge Jesus, mas não há grandes diferenças entre este sintético e um bom relvado natural.» O responsável explica ainda que tal se deve à adição de matérias de fibra de côco, que, alega, «permitem aproximar o relvado sintético do natural».

Time-lapse da substituição do relvado natural do Bessa pelo sintético, em 2009


Outros exemplos europeus

Na Europa, há cada vez mais clubes europeus a optar pelos relvados sintéticos em detrimento dos naturais. Em França, Nancy (Ligue 2) e Lorient (Ligue 1) renderam-se a este composto em 2010 e, na liga holandesa, Heracles, Zwolle e Excelsior também já abdicaram do cheiro a relva natural nos estádios.

Em 2010, o então presidente do Sporting, José Eduardo Bettencourt, pensou nesta solução para resolver definitivamente os problemas recorrentes com o relvado do estádio. «O Sporting hoje não sabe o que é jogar em casa. É um obstáculo enorme», disse à margem de um encontro com os sócios, em Vendas Novas. O acordo com a Playpiso estava fechado, explica Jorge Prazeres. «Foi público. Só não avançou porque a direção mudou. Acabámos por instalar dois relvados em Alcochete», recorda o empresário, cuja empresa tem ainda campos sintéticos em
La Masia, casa da formação do Barcelona.

Mas o tema dos relvados sintéticos está ainda longe de gerar consenso. A mais recente polémica foi protagonizada por cerca de 40 jogadoras, que, numa carta à FIFA, mostraram-se contra a decisão da entidade em realizar todos os jogos do Mundial Feminino (em 2015, no Canadá) em estádios com tapete artificial. As jogadoras queixaram-se de «tratamento discriminatório».

Adaptação rápida ao sintético

«As equipas da I Liga jogam e treinam habitualmente em relvados naturais. Por isso, é natural que tenham de fazer alguma adaptação. Não sei como o Benfica vai fazer, mas talvez faça um treino de adaptação», antevê Pedro Mil-Homens em conversa com o Maisfutebol.

O Rio Ave defronta esta quinta-feira o Elfsborg, para a primeira mão do play-off de acesso à Liga Europa. O jogo, na Suécia, vai ser disputado em relva sintética. Na conferência de imprensa de antevisão do jogo, Cássio, guarda-redes da equipa vilacondense, falou sobre o assunto.

O coordenador adjunto do mestrado em Treino Desportivo, pela FMH, entende que as diferenças entre os dois pisos são hoje menores do que há vários anos. «Aqueles relvados super-duros, que eram como se os jogadores estivessem em cima de uma alcatifa assente num piso de cimento, estão ultrapassados. Houve uma grande evolução.»

Pedro Mil-Homens, que também foi director da Academia do Sporting, em Alcochete, sublinha que, apesar das aproximações, haverá sempre diferenças. E completa: «Não é por acaso que nenhuma grande competição internacional se joga em sintético.»

Recorde-se que a UEFA recusou que a final de Liga dos Campeões, em 2008, (ganha em Moscovo pelo Manchester United ao Chelsea) fosse jogada em relva artificial. Na altura, o piso sintético do Estádio Luzhniki, palco do jogo derradeiro da competição, foi substituído provisoriamente por um natural.

Benfica, Sporting, FC Porto e Seleção Nacional já jogaram no Estádio Luzhniki. Só os «dragões» ganharam (5-2 em 2011)

Os riscos de lesão

Durante anos, muito se falou da maior propensão para a ocorrência de lesões em relvados sintéticos. Foi num destes pisos que, em 2003, o antigo defesa central do Sporting Hugo contraiu a lesão mais grave de uma carreira profissional de 20 anos.

Aos 24 minutos do jogo contra o 1º Dezembro, em Sintra, para a 4ª eliminatória da Taça de Portugal, o jogador caiu no relvado. O resultado: rompeu o tendão de aquiles do pé esquerdo e ficou vários meses afastado da competição. Foi o primeiro e único jogo que Hugo fez em toda a carreira num sintético.

Hugo jogou no Sporting entre 2000 e 2006

«Podíamos estar a discutir horas se o piso contribuiu para a lesão, mas a verdade é que nunca tinha tido sequer qualquer tipo de queixas ao nível dos tendões. O que me disseram os médicos? Que tinha importância. O piso era pouco mais do que uma alcatifa», conta o antigo jogador ao Maisfutebol.

Hugo sublinha que, apesar da evolução registada no mercado dos sintéticos nos últimos anos, continua a haver diferenças entre os relvados natural e artificial. E antevê dificuldades para o jogadores mais dotados tecnicamente. «A qualidade faz sempre a diferença, mas também não tenho dúvidas de que um grande jogador não tem o mesmo desempenho quando chega a um sintético.»

O administrador da Playpiso, Jorge Prazeres, explica que a ocorrência de lesões em sintéticos está hoje mais relacionada com o equipamento dos jogadores do que propriamente com o piso. Isto apesar de referir que ainda há muitos maus sintéticos em Portugal.

«Nos últimos anos, a estética trouxe para o futebol botas profundamente antagónica aos movimentos naturais dos jogadores em competição. Vou estar muito atento ao calçado que os jogadores vão levar para o jogo entre o Boavista e o Benfica», diz o responsável, para quem a chuteira mais adequada continua a ser a Copa Mundial, modelo da Adidas lançado em 1979.


Clubes com sintéticos em primeiras divisões europeias

Dinamarca
Nordsjaelland

França
Lorient

Holanda
Zwolle
Heracles Almelo
SV Excelsior

Itália
Cesena

Noruega
Bodo/Glimt
Aalesund
Odd Grenland

Rússia
Spartak Moscovo

Suécia
Elfsborg
IFK Norrköping

Suíça
Young Boys