«Quando me perguntam quais são os meus maiores títulos na formação, eu respondo que é quando me sento no sofá e ligo a Premier League, a La Liga, a Liga francesa e a Liga alemã e vejo a seleção nacional inundada de jogadores com os quais eu trabalhei.»

Quem o diz é Renato Paiva, treinador que acaba de colocar um ponto final numa ligação profissional de 16 anos ao Benfica e onde passou por praticamente todos os escalões, com três títulos nacionais e quatro distritais.

Ainda antes da viragem do ano – e prestes a seguir de viagem para o Equador, onde vai treinar o Independiente Del Valle – o técnico de 50 anos falou, numa grande entrevista ao Maisfutebol, do novo desafio e fez uma retrospetiva de uma vida ao serviço do clube da Luz, para o qual entrou ainda antes da criação do Seixal.

Neste excerto da conversa, Renato Paiva identifica João Félix como o jogador mais talentoso que treinou, fala do processo da sua contratação, dos primeiros impactos que teve ao vê-lo treinar e revela um castigo ao agora craque do Atlético Madrid para o pôr na linha. Fala ainda do melhor talento que não atingiu o patamar projetado, de Gonçalo Ramos e de Paulo Bernardo, que poderá ser «um caso muito sério no futebol mundial.

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Maisfutebol – Qual foi o jogador mais talentoso que lhe passou pelas mãos?
Renato Paiva –
Facílimo! O João Félix. É o jogador mais talentoso que treinei até hoje. Não treinei o Bernardo Silva: ele estava com o Bruno nos sub-17 e eu estava nos sub-16.

MF – O Renato foi o primeiro treinador do João no Benfica, certo?
R.P. –
Sim. Quando ele vem do FC Porto, vem para os juvenis e eu sou o primeiro treinador dele.

MF – Já o conhecia? Foi para o Benfica com o seu aval?
R.P. – O Benfica seguia o João desde que ele era infantil. E houve uma altura em que entre Benfica e FC Porto quiseram o João e ele optou pelo FC Porto por questões de distância. Mas o Benfica nunca perdeu o João do radar. Quando em sub-16 chegou aos ouvidos de alguém que ele estava insatisfeito no FC Porto e que queria sair, obviamente o Benfica posicionou-se para ele vir para o Benfica. Foi mérito da prospeção e de quem estava perto dele.

MF – Qual foi a primeira impressão que teve dele nos treinos?
R.P. – Logo na primeira semana, eu via o João a fazer coisas, virava-me para o Nuno Cardoso, o meu adjunto, e dizia-lhe: ‘O que é que está a acontecer aqui? Viste o mesmo que eu vi? Como é que um jogador destes sai do FC Porto?!’ Ele tem um manancial técnico inacreditável, um gaming sight, aquele feeling para o jogo que é uma coisa do outro mundo. E isso não se treina. É uma coisa que está dentro do jogador: vem do futebol de rua, da matreirice, da manha. E o João tinha todos esses atributos. Era um pauzinho de virar tripas, é verdade, mas era resiliente e quando era para ir para o conflito, ia. Tinha mau feitio, mas era um miúdo muito humilde. Fazia coisas inacreditáveis nos treinos e nos jogos. As pessoas diziam-me assim: ‘Onde é que joga o João?’ Joga dentro do campo: é o único sítio onde tinha de estar. Do meio-campo para a frente, fazia qualquer posição. À direita, à esquerda, atrás do avançado ou como avançado.

MF – E é fácil manter um sobredotado sempre com os pés assentes no chão e garantir que ele coloca sempre os interesses coletivos à frente, talvez, dos impulsos naturais?
R.P. – Depende do sobredotado e da personalidade deles. Há aqueles que são de personalidade forte e vincada, mas que os outros jogadores percebem que aquela preponderância faz bem à equipa: ‘Estamos aflitos, pá, dá-lhe a bola e ele resolve.’ Os grupos identificam esses sobredotados e normalmente não se incomodam com essas questões. O João era um miúdo fácil de gerir, humilde, mas que passado um mês ou dois de Benfica, com a preponderância que começou a ganhar, começou a desleixar-se em algumas tarefas, essencialmente nas defensivas. E esteve praticamente um mês na bancada e no banco. Foi a maneira que encontrámos para demonstrar-lhe que não chegava aquilo que ele estava a fazer. Jogar só com bola é para alguns, só para predestinados, mas na formação não: na formação, o jogador tem de desenvolver as suas capacidades. O João percebeu. Foi um reavivar daquilo que ele passou no FC Porto, porque não jogava. Foi uma estratégia para dizer-lhe: ‘Ganhaste aqui uma preponderância, começaste muito bem, mas agora estás a desleixar-te em fatores e momentos do jogo que não podem acontecer. Se quiseres voltar ao ponto de partida, muito bem. Se não quiseres, o que vai acontecer-te é isto.’ Ele era um jogador de grandíssimo potencial, mas que estava a perder fatores que estavam a ficar para trás em relação ao crescimento dos outros jogadores. E havia que alinhar isso. Ele soube ouvir, perceber, passado um mês e tal voltou, foi o melhor marcador da equipa e foi indiscutível até ao final da época.

MF – Mas ele precisou desse mês e tal para perceber a mensagem?
R.P. – Ele aos poucos foi saindo da equipa e deixando de jogar.

MF – E deixaram-no inicialmente na dúvida?
R.P. – Sim, sim. Tirámo-lo e ficámos à espera de perceber qual seria a reação dele. Começámos por não dizer nada, até que eu tive uma conversa com o João. ‘Sabes porque é que não estás a jogar?’ ‘Sim, imagino.’ ‘E querer dar razão aos treinadores ou querer pôr o potencial todo que tens?’ Eu digo-lhes sempre a técnica e o talento não se compra no supermercado. Querer defender e correr está dentro do jogador, mas precisa de ser ativado.

MF – E qual foi o melhor talento que treinou que sente ter ficado muito aquém do patamar que poderia ter atingido?
R.P. – O maior deles todos está na II Liga, que é um patamar muito baixo em relação à qualidade dele: é o André Carvalhas. Treinei-o um ano em sub-16, um em sub-17 e dois anos de juniores. Estive quatro anos com a geração de 89 e durante esses anos pude ver o que era o André Carvalhas. Maravilhar-me com coisas que eles faziam nos treinos e nos jogos. Os nossos adversários tinham pesadelos com o André Carvalhas. E eu pensei sempre que o André ia fazer uma carreira de altíssimo nível. Não é que a carreira dele não seja boa, porque ele continua a jogar, mas está numa II Liga, que para mim é manifestamente pouco para o que mostrava e prometia.

MF – E como é que o treinador de formação, que também tem uma base muito forte de pedagogia, gere esses casos? Há sentimentos de impotência ou de culpa própria também?
R.P. – O nosso processo não passa só pelo jogo e pela parte técnico-tática, mas também pelo crescimento do jogador enquanto homem. Podemos falhar em alguma coisa. Mas às vezes não falhámos: podemos querer muito que o jogador dê jogador, mas se ele não quiser até podem vir cá o Guardiola ou o Mourinho.

MF – Fale-nos do Gonçalo Ramos e da forma como descobriu nele um avançado-centro.
R.P. –
O Gonçalo já estava na formação do Benfica há algum tempo e eu pego na geração de 2001 nos juvenis. Ele fazia parte dessa geração e aí via-se já claramente que ele era um avançado. Gosto mais de vê-lo atrás do ponta-de-lança: não gosto de vê-lo como ponta-de-lança, porque ele beneficia bastante dos espaços que um ponta-de-lança cria com as suas movimentações. E ele aproveita isso como ninguém, porque é super inteligente a ocupar espaços. E tem uma disponibilidade física para o jogo inacreditável. Na nossa equipa B jogávamos em 4x3x3 e ele conseguia ser o nosso segundo avançado e o terceiro médio quando precisávamos. Muitas vezes perdia-se a bola na frente, a bola vinha para a nossa área e o Gonçalo Ramos já estava perto dos defesas. Tem uma grande disponibilidade para o trabalho, gosta de treinar, de aprender e tem uma mentalidade fantástica: não joga, paciência. Quer é mostrar ao treinador que está errado. Não se vai abaixo facilmente e depois tem muito golo: chamam-lhe o feiticeiro, porque é com o joanete, é com o tornozelo…

MF – Isso também não se ensina.
R.P. – Não! Ou se tem ou não se tem. E evidentemente o Gonçalo tem isso. E morfologicamente é um atleta. Tem tudo em termos estruturais e mentais. Mas ainda tem algumas lacunas técnicas quando o jogo aperta mais e precisa de desenvolver mais aquela técnica fina do toque na bola e na receção. Mas o resto tem tudo: O Gonçalo vai ter um futuro lindíssimo no futebol.

MF – A que outros jovens do Benfica devem os adeptos estar atentos para os próximos anos?
R.P. – Paulo Bernardo, claramente. Morato: que deixem o processo de adaptação à Europa ter o seu tempo. Na América do Sul há lacunas táticas muito grandes, até na forma como põem os apoios e isso está a ser trabalhado com o Morato, que disse recentemente que lhe tínhamos ensinado coisas que ele não fazia ideia que existiam. Trabalhar uma linha defensiva na Europa não tem nada a ver com a forma como se trabalha no Brasil. As pessoas têm de ter alguma paciência e perceber que tudo na vida tem um tempo.

MF – E mais?
R.P. – O Tomás Araújo. Um central de enormíssima qualidade e muito completo: tem tudo em potencial para ser um central de equipa grande, fabuloso. O Henrique Araújo, ponta-de-lança, é outro miúdo super inteligente nas movimentações e tem muito golo. Mas há sempre aquelas surpresas: aqueles que não esperamos e que aparecem.

MF – Tem casos que se enquadrem nesse exemplo?
R.P. – O Miguel Vítor, da tal geração de 89, que treinámos durante quatro anos. Diria que era impossível que ele fosse o primeiro daquela geração a estrear-se pela equipa principal do Benfica. Pelas lacunas técnicas que ele tinha: mas ele era tudo vontade, inteligência, querer aprender e tinha uma disponibilidade física fantástica para o jogo. E ele chegou lá acima por isso e está a fazer uma carreira muito interessante no estrangeiro.

MF – Falou no Paulo Bernardo. O que é que o distingue?
R.P. – A inteligência e a capacidade técnica. Tem um poder de decisão fantástico e uma perceção do jogo muito acima da média. Fisicamente, para um médio de qualidade técnica tem atributos físicos muito interessantes. Pela pouca exigência dos campeonatos de formação, percebíamos que era um miúdo que tinha muita qualidade, mas que andava um bocadinho a gasóleo porque a exigência era o que era. E quando chegou à equipa B e à exigência dos treinos e dos jogos, ele acompanhou rapidamente e deu um salto qualitativo. Não era um jogador de duelos nem de raio de ação muito grande e agora é. Já lhe disse que ele é um médio de grande potencial, mas há uma coisa que vai diferenciá-lo entre vir a ser um grande médio ou um médio top. Um grande médio é um grande médio e um médio top é um médio que faz golos. E o Paulo tem de insistir em aparecer mais em zonas de finalização e rematar mais à baliza. Se ele tiver isto, vai ser um caso muito sério no futebol mundial.

Paulo Bernardo prolongou em 2020 o vínculo ao Benfica até 2024. Faz 19 anos este mês

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