«Quando me perguntam quais são os meus maiores títulos na formação, eu respondo que é quando me sento no sofá e ligo a Premier League, a La Liga, a Liga francesa e a Liga alemã e vejo a seleção nacional inundada de jogadores com os quais eu trabalhei.»

Quem o diz é Renato Paiva, treinador que acaba de colocar um ponto final numa ligação profissional de 16 anos ao Benfica e onde passou por praticamente todos os escalões.

Ainda antes da viragem do ano – e prestes a seguir de viagem para o Equador, onde vai treinar o Independiente Del Valle – o técnico de 50 anos falou, numa grande entrevista ao Maisfutebol, do novo desafio e fez uma retrospetiva de uma vida ao serviço do clube da Luz, para o qual entrou ainda antes da criação do Seixal.

Neste excerto, Renato Paiva aborda a queda de Bruno Lage no Benfica e admite que o fim pode ter fechado a janela de acesso à equipa principal que entretanto se tinha aberto para os treinadores da formação. Reconhece ainda que tinha a expectativa de ser ele a terminar a época passada e diz que se preparou para isso, mas que nunca houve conversas para tal.

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Maisfutebol – O título de 2019 mostrou que o Benfica também pode ser campeão com o treinador da formação, como aconteceu com Bruno Lage. Sentiu que a equipa principal passou também a estar ao alcance dos treinadores da formação como está dos jogadores?
Renato Paiva –
Sinto a mesma coisa que sinto em relação aos jogadores: que a competência não tem idade. Não tenho dúvidas de que um treinador com 30 anos de experiência é melhor do que um com dez anos de experiência, porque a experiência dá muitas valências ajudam um treinador a ser melhor. Mas não é o mais importante: é a competência, é ser bom ou não ser, ter nascido ou não para aquilo. Por isso é que o Nagelsmann é o treinador que é com a idade que tem. Como um treinador com 60 anos continua a ser bom. O Jorge Jesus, por exemplo. Respondendo à pergunta: se as pessoas forem competentes, acho que é possível.

MF – Mas essa janela de acesso à equipa principal abriu-se?
R.P. – Abriu-se. Mas acho que é mais difícil isso acontecer nas equipas grandes. Lançar-se um treinador assim da formação ou da equipa B. O Sporting até fez isso com o Paulo Bento e o Sá Pinto, e o Sp. Braga com o Abel. Mas não é normal que isso aconteça. Mas não sei se se abriu e se depois se fechou.

MF – Pela forma como terminou Bruno Lage…
R.P. – [Acena com a cabeça] Não tenho dúvida nenhuma de que se abriu, mas depois fechou-se. E depois, em Portugal, voltamos ao mesmo: é a questão das etiquetas. Põem-se etiquetas e acabou-se: um treinador de formação é um treinador de formação. Quando eu cheguei à equipa B, cada vez que perdíamos diziam que eu era o treinador dos putos e não sabia treinar homens. O Abel também treinava putos, depois foi treinar os seniores e aconteceu o que aconteceu. E o Amorim a mesma coisa. Mas quando perdem, são os treinadores de miúdos.

MF – Lage saiu do Benfica com essa etiqueta?
R.P. – Não acho. A época correu mal, mas não acho que saia como alguém rotulado de treinador de formação. O que pode acontecer é: quando as pessoas forem escolher, já não vão escolher com tanto à vontade um treinador da formação. A não ser que seja de forma temporária.

MF – Não seria descabido que, depois de Bruno Lage ter substituído Rui Vitória, fosse o Renato a assumir a equipa na reta final da época passada. Tinha essa expectativa?
R.P. – Tinha e acho que não era descabido. Ter essa expectativa era legítimo: houve um treinador da equipa B que substituiu o da A, e havia um treinador a chegar, mas um espaço para alguém pegar na equipa. E eu, enquanto treinador da B, sentir-me-ia legitimado porque o processo tinha sido assim. Agora: duas coisas importantes: nada tem a ver com o Veríssimo, que é um grande ser-humano, um grande treinador e fez um trabalho dificílimo num contexto dificílimo. E nada contra a escolha do presidente: não tenho dúvidas nenhumas de que tomou a melhor decisão para o Benfica. Nunca questionarei decisões de hierarquias. Mas uma coisa é questionar decisões de hierarquias, outra é achar que poderia ser uma escolha ou que me sentiria preparado para isso. E depois, com a catadupa de notícias que começou a aparecer nos jornais e nas televisões, mesmo que não queiramos começamos a alimentar essa possibilidade. E eu tinha as coisas preparadas: tinha um plano B e quando comecei a ouvir isso disse que não me iam apanhar desprevenido. Eu estava já perfeitamente preparado para isso caso acontecesse.

MF – E nunca houve conversas nesse sentido?
R.P. – Nunca. Mas é público que alguns jogadores pensavam que ia ser eu. Mas nunca houve conversas.

MF – Mas lendo o que os jornais escreviam e ouvindo o que os jogadores diziam, pensava que essa conversa teria lugar?
R.P. – [Pensativo] Eu sou um bocadinho cético e as futurologias correm-me quase sempre mal. Não gosto muito dos ‘ses’. Gosto de coisas concretas: e como ninguém da estrutura me disse alguma coisa, nunca assumi que tivesse sido possibilidade. No entanto, prefiro estar preparado para as coisas do que ser apanhado desprevenido. E eu tive tempo, porque as notícias foram surgindo durante algum tempo. E durante algum tempo, enquanto profissional do Benfica, continuei a trabalhar para a equipa B e ao mesmo tempo criei uma realidade paralela para estar preparado quando isso acontecesse. Tinha capacidade para dar resposta. Pelo menos para o trabalho: não sabia era os resultados que teria.

MF – Mas não vivia nessa realidade paralela?
R.P. – Isso não. Porque eu não gosto de ‘ses’. Mas se o telefone tocasse, eu dizia sim senhor e tinha um plano. Estava preparado. Mas não tocou.

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