«Quando me perguntam quais são os meus maiores títulos na formação, eu respondo que é quando me sento no sofá e ligo a Premier League, a La Liga, a Liga francesa e a Liga alemã e vejo a seleção nacional inundada de jogadores com os quais eu trabalhei.»

Quem o diz é Renato Paiva, treinador que acaba de colocar um ponto final numa ligação profissional de 16 anos ao Benfica e onde passou por praticamente todos os escalões.

Ainda antes da viragem do ano – e prestes a seguir de viagem para o Equador, onde vai treinar o Independiente Del Valle – o técnico de 50 anos falou, numa grande entrevista ao Maisfutebol, do novo desafio e fez uma retrospetiva de uma vida ao serviço do clube da Luz, para o qual entrou ainda antes da criação do Seixal.

Nesta parte da entrevista, Renato Paiva fala da metodologia da nova equipa, de como chegaram até ele, do potencial do futebol equatoriano e dos tempos em que passava madrugadas a ver jogos da América do Sul. «Sempre fui fã da Argentina. Sou um Maradoniano confesso, das equipas argentinas e tenho um conhecimento desta realidade, até porque fiz algum scouting para o Benfica dessa zona.»

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Maisfutebol – O Equador não é propriamente um destino habitual para um treinador português. Ficar em Portugal numa outra equipa não o estimulou?
Renato Paiva – Não. Na equipa B continuaria a não lutar por títulos. E não queria de forma nenhuma – e nunca faria isso – subverter a minha verdadeira missão enquanto treinador da equipa B. Saindo da equipa B, só poderia lutar por títulos em Portugal em FC Porto, Sporting e equipa A do Benfica. E também não me parecia que isso acontecesse. Entre ficar à espera do Sp. Braga, que está muito bem orientado pelo Carlos Carvalhal, se calhar a oportunidade de lutar por títulos aqui estava fechada. E saindo da equipa B indo para uma realidade onde posso enriquecer o currículo e onde vou jogar para ganhar… Jogamos sempre para ganhar em qualquer clube, mas as possibilidades de ganhar estando num grande clube são muito maiores. É verdade que esta oportunidade surge para um país longínquo, mas depois quando se olha para o projeto e se conhece o clube, com muitas particularidades parecidas com o Benfica, com a questão da academia do Independiente del Valle, a questão de nunca terem sido campeões nacionais – e pode ser que tropecemos na histórias e estejamos no lugar certo à hora certa, porque esse é o grande desafio que a direção nos lançou – e as condições financeiras que eu não teria em Portugal, se tiver de ser no Equador, é no Equador. E o Equador é na América do Sul, que é onde está a essência do futebol.

MF – Um futebol mais técnico.
R.P. – Sim. O jogador está em estado puro, seja ele brasileiro, argentino, colombiano ou equatoriano. Quando vêm para a Europa ganham outras coisas que não têm ali. E vieram buscar-me à Europa para dar essas coisas lá. Esse desafio, de poder ganhar e desenvolver jogadores, que foi o que fiz a vida toda…

MF – (…)
R.P. – O Moisés Caicedo, que está a ser negociado para Inglaterra [n.d.r.: notícias colocam o Manchester United como o destino provável], tem 19 anos, é titular da seleção A do Equador e produto das escolas do Independiente, como é o [Gonzalo] Plata e um miúdo que foi agora vendido para os belgas do Genk [Angelo Preciado]. Poder fazer as duas coisas – ganhar e desenvolver – é fantástico para mim. Dou um passo na minha carreira, mas não é um passo radical. É um passo sustentado, com alguns pontos de ligação. E tenho de ser realista, porque não ando aqui para enganar ninguém: não tenho currículo para ir para Inglaterra, Espanha ou França. Mas é absolutamente lisonjeiro para mim que um grande clube do Equador se lembre de um treinador cujo currículo esteve quase sempre ligado ao Benfica e veja nele e na forma de jogar das suas equipas a solução ideal para levar o Independiente ao título e a disputar provas internacionais. Não podia pedir mais neste momento.

Independiente del Valle em ação contra o Flamengo no segundo jogo da Recopa Sul-Americana em fevereiro deste ano. A equipa então orientada por Jorge Jesus acabou por erguer o troféu equivalente à Supertaça Europeia

MF – Provas internacionais que o Independiente del Valle já venceu. A Taça Sul-Americana em 2019, que o levou a jogar a Supertaça Sul-Americana com o Flamengo então de Jorge Jesus.
R.P. –
Exatamente. E agora temos a pré-eliminatória para a Libertadores, que é outro objetivo importante. É um contexto de América do Sul que me entusiasma bastante. Sempre fui fã da Argentina. Sou um Maradoniano confesso, das equipas argentinas e tenho um conhecimento desta realidade, até porque fiz algum scouting para o Benfica dessa zona, entre Copa Libertadores, Sul-Americana, Liga da Argentina e Uruguai. E esse futebol sempre me apaixonou. O tal futebol de rua – mais puro e menos tático onde se vê a essência técnica dos jogadores e depois a envolvência do público, as atmosferas que se criam nos campos que espero que voltem em breve. Tudo isso são aliciantes que me levaram a aceitar este convite.

MF – Entre que anos fez esses trabalhos de scouting na América do Sul?
R.P. – Desde que entrei, em 2004, até chegar aos juniores, quando comecei a treinar de manhã e aí era impossível. Treinava os juvenis à tarde e normalmente deitava-me às 03h00/03h30 da manhã. Entre jogos para a Libertadores à terça e à quarta, Sul-Americana à quinta, e campeonatos sexta, sábado, domingo e segunda: batia aquilo tudo [risos].

MF – Que jogadores foram indicados por si?
R.P. – O Óscar Cardozo, o Enzo Pérez, o Gaitán. Mas não foram só indicados por mim, porque havia scout e nós entretanto falávamos entre todos. Mas eram jogadores de quem eu falava com o Rui Costa, o [José] Boto ou alguém da prospeção. Eram nomes consensuais, como o próprio Maxi e outros que acabaram por não vir. Claro que, treinando equipas, não tinha a capacidade de ir ver os jogadores in loco, mas vendo na televisão ia trocando mensagens com quem ia e estava lá. Foi uma ligação mais ou menos direta a estes processos.

MF – Voltemos ao Equador. A seleção sub-20 daquele país é campeã da América do Sul e foi semifinalista do último Mundial da categoria.
R.P. – Ainda bem que diz isso, porque eu acho piada a alguns comentários que leio, de pessoas que dizem que eu vou para o fim do Mundo. Para já, é no centro do Mundo [risos]. E quem diz isso não tem a mínima noção do que é o futebol do Equador, que é um dos países fortes da América do Sul. E ainda bem que falou nesses títulos, porque evidentemente é um viveiro de jogadores. Para um treinador, é fantástico quando há qualidade. Uma vez perguntaram ao Scolari como era gerir tantos bons jogadores e a resposta dele foi: ‘O que é complicado é gerir muitos maus jogadores.’ Havendo qualidade, isso é claramente um aliciante para irmos para ali, sabendo que essa qualidade está muito em bruto e que os jogadores têm noções táticas que não são muito trabalhadas e nós vamos lá para isso: para levar uma marca mais tática e fazer aqueles jogadores crescer dentro de uma melhor organização de jogo.

MF – Vê no Equador um país com potencial para que se torne numa das grandes potências futebolísticas da América do Sul nos próximos anos?
R.P. – Potência, potência, acho que nunca fugiremos do Brasil, da Argentina e pouco mais. Mas poderá acontecer, num ou noutro ano como aconteceu com a Colômbia, o Uruguai e o Chile, que ganharam Copas Américas, e alguns deles mundiais, isso poderá acontecer ocasionalmente. Tornar-se numa potência, penso que será difícil. Mas quanto mais e melhor se desenvolver o futebol ali, mais resultados haverá. De uma coisa não há dúvidas: jogadores de qualidade existem e acredito que o Equador possa numa ou noutra vez bater-se pontualmente com estas equipas.

MF – E como é que o Indepediente del Valle chegou até si?
R.P. – Eles têm uma filosofia muito própria da qual eles não abdicam e eu vejo o projeto do Independiente del Valle muito similar ao do Shakhtar Donetsk na Europa. Uma forma de jogar que promova o jogador e o prazer do adepto em ver o jogo. Ser protagonista, jogar para ganhar e ter a bola. Quando escolhem treinadores, eles vão à procura disto. Está lá um treinador de guarda-redes que é português: o Ricardo Pereira.

MF – Ex-Benfica.
R.P. – E que foi meu treinador de guarda-redes nos juvenis do Benfica. Quando se desenhou a saída do Miguel [Ramírez], a direção começou a procurar alternativas e perguntaram ao Ricardo se conhecia alguém que encaixasse nesse perfil. E ele respondeu: «Trabalhei com uma pessoa que é a cara deste projeto.» A partir daí contactaram-me, eu mandei vídeos de modelo de jogo, de modelo de treino, eles viram dez jogos meus desde que entrei para a equipa B há dois anos. E fiz algumas entrevistas, também para conhecerem o meu perfil, porque o clube é muito respeitado na América do Sul pela sua forma de estar no desporto. Há coisas lá que são inegociáveis em termos de respeito e tudo mais. E após este estudo e também o conhecimento que o Ricardo tem de mim, acabei por ser eu o eleito, mas com um estudo muito profundo da parte da direção do Independiente. Um processo que eu sabia que existia em Inglaterra.

MF – As entrevistas de emprego.
R.P. – Exatamente. Não há em mais lado nenhum: em Portugal não há nem 10 por cento do que eu fiz. Todos os treinadores que eram hipótese foram sujeitos a este processo: entrevistas de liderança, entrevistas para explicar o modelo de jogo, de treino, o que me levava a sair do Benfica e de Portugal… Imensas entrevistas com imensas pessoas. Também telefonaram para jogadores que trabalharam comigo para que eles lhes dessem informações sobre mim.

MF – Para ‘fim de mundo’ não está mau.
R.P. – Exatamente! Eu tenho uma relação muito forte com o Juanma Lillo, que é agora adjunto do Pep Guardiola, e que treinou no México e na Colômbia. Quis saber a opinião dele e ele disse: ‘Vai ontem. É a tua cara e vais para o clube mais europeu da América do Sul.’ E não é por acaso que quando lemos sobre o Independiente nas redes, há sempre um termo repetido, que é um projeto diferente. Toda a gente fala disto. É um clube com valores morais muito vincados: posso dizer que tenho uma cláusula no meu contrato em que se me portar mal posso ser despedido por justa causa. E não se desviam um bocadinho da filosofia deles.

MF – Os mais de 15 anos de ligação ao Benfica não o fizeram hesitar nem um bocadinho, independentemente de todos esses aliciantes que já enumerou?
R.P. – Não, porque quando comecei projetei a minha carreira para o presente e para o futuro. E eu gostava que a minha carreira fosse um dia lutar por títulos. E há muitos bons treinadores que nunca conseguiram sequer lutar por títulos ao longo das suas carreiras. Eu projetei a minha carreira para ir dando passos sustentados, como aconteceu comigo no Benfica: estive sempre muito tempo em todos os escalões, tirando os juniores, onde estive seis meses por causa dos acontecimentos que sabemos [saída de Rui Vitória e subida de Bruno Lage da equipa B à equipa principal]. Projetei uma situação destas para a minha carreira numa perspetiva de futuro. E esta oportunidade não me fez pensar duas vezes: achei que é a oportunidade ideal para entrar neste contexto de exigência e de pressão de ganhar. Eu preciso desta pressão e tinha-a no Benfica. Uma das coisas boas que os 16 anos no Benfica me deu foi saber viver com a pressão que é inerente aos jogos do Benfica. Quando eu treinava os sub-14 e não ganhávamos, eu ia ao café e levava lá um recadozinho de um adepto. Quando não nos insultam e entendem a essência do nosso trabalho, isso é bom. Essa pressão está-me entranhada. Mas esta questão de jogar para ganhar, que se esbate um bocadinho na equipa B, começou a vazar-me por dentro. Acho que quem treina na equipa B ou tem este perfil e ponto, ou então tem um período em que deve estar e seguir depois a sua vida. E eu tinha necessidade do futebol de elite, de títulos e de resultado. Veio no momento exato.

MF – Confessou que é um apaixonado pelo futebol da América do Sul, mas treinar nesse continente alguma vez foi definido por si como um objetivo de carreira?
R.P. – Por acaso nunca me passou pela cabeça [risos]. Eu acompanhava o futebol sul-americano e até há poucos anos não havia praticamente treinadores europeus a trabalhar na América do Sul. E, não havendo, nunca me passou pela cabeça que aquele mercado se abrisse. O Caixinha no México e depois o Jorge Jesus no Brasil começam a abrir aquele mercado e começam a ir treinadores de cá para lá. Mas eu estaria longe de pensar que o clube do Equador, da Colômbia ou da Argentina se fosse lembrar de mim. Mas também é verdade que entrando ali e fazendo um bom trabalho, aquele mercado vai-se abrir. Mas já estou num grande clube da América do Sul e agora não há rigorosamente mais nada na minha cabeça e no meu coração que não seja o projeto do Independiente del Valle.

MF – Mas não preocupa, por oposição, que o mercado europeu se feche?
R.P. –
Não me preocupa nada. Preocupa-me é ter uma equipa para treinar. É a maior paixão da minha vida. Acordo todos os dias e não vou para o trabalho: vou ao encontro da minha paixão e sinto-me um privilegiado por isso. Claro que temos ambições e sabemos que a Europa é o ponto mais alto. Quero é trabalhar: se as coisas acontecerem naturalmente, ótimo. Se não, tudo tranquilo na mesma. O que eu quero é ter uma equipa para trabalhar. E quem trabalha bem tem sempre os mercados abertos. Vamos para trabalhar bem, para deixar marca e para fazer história: e fazer história é ganhar o campeonato do Equador, que é o nosso principal objetivo.

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