«Quando me perguntam quais são os meus maiores títulos na formação, eu respondo que é quando me sento no sofá e ligo a Premier League, a La Liga, a Liga francesa e a Liga alemã e vejo a seleção nacional inundada de jogadores com os quais eu trabalhei.»

Quem o diz é Renato Paiva, treinador que acaba de colocar um ponto final numa ligação profissional de 16 anos ao Benfica e onde passou por praticamente todos os escalões.

Ainda antes da viragem do ano – e prestes a seguir de viagem para o Equador, onde vai treinar o Independiente Del Valle – o técnico de 50 anos falou, numa grande entrevista ao Maisfutebol, do novo desafio e fez uma retrospetiva de uma vida ao serviço do clube da Luz, para o qual entrou ainda antes da criação do Seixal.

Nesta parte de uma longa conversa, Renato Paiva aborda a necessidade que tinha de experienciar o futebol de elite, da filosofia da equipa B, das dificuldades que enfrentou nos últimos dois anos naquela que é a derradeira rampa de lançamento de jovens talentos para a equipa principal das conferências de imprensa acutilantes e dos jogadores mais fortes psicologicamente com os quais trabalhou.

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Maisfutebol – Estava há dois anos a treinar um patamar competitivo de seniores, mas num contexto muito próprio e no qual a formação é ainda o principal foco. Sentia necessidade de um desafio novo?
Renato Paiva
– Não há muito tempo. Ao longo deste tempo, a minha principal missão, tal como a de quem trabalha na formação do Benfica, foi formar jogadores. Tentamos sempre ir ao encontro do lema formar a ganhar, que sempre defendi que era muito difícil. Mas sempre que não ganhámos, formámos, tal como os nossos adversários diretos, que foram sempre boas equipas e obrigaram-nos a fazer bons campeonatos. Misturávamos as duas coisas, mas na equipa B isso é praticamente impossível nos moldes em que o Benfica estruturou esta equipa e que eu acho ser o correto. E não me venham com a história de que o FC Porto B foi campeão: foi num ano completamente diferente, não tinha uma faixa etária tão baixa e não tinha a instabilidade do sobe e desce de jogadores que vão para a equipa A, para os sub-23 ou para os juniores para ser campeão na fase final, o que também nos aconteceu na primeira época na equipa B. Acho que não estou a cometer nenhum erro se disser que a equipa do Benfica é a mais nova de sempre das equipas bês do Benfica. É claramente a equipa mais nova dos campeonatos profissionais em Portugal e há faturas que se pagam. Eu assumo: se alguém conseguir ser campeão, ‘chapeau’. E não é só isso. Não é só a idade deles, mas também a forma como queremos que eles joguem e cresçam. Eu disse em várias intervenções públicas que se tivéssemos uma equipa B de contenção, de espera e de bloco baixo, de explorar o erro do adversário, etc., tínhamos melhores classificações sem dúvida nenhuma.

MF – Muitas das equipas da II Liga têm esse tipo de abordagem contra o Benfica B?
R.P – Sim. Fazem isso! Aproveitam-se da nossa filosofia e jogam no nosso erro. E o erro dos miúdos é muito mais comum do que num jogador experiente. Esta filosofia de querer assumir o jogo, de querer jogar apoiado desde trás e pressionar o adversário na linha da área deles, de deixar espaço nas costas e querer, também pela inexperiência impetuosidade deles, meter muita gente no processo ofensivo quando temos bola fez com que perdêssemos muitos pontos.

MF – Mas é uma filosofia inegociável?
R.P. – Se não fizermos isso, não estamos a preparar jogadores para o Benfica. Qual é a realidade do Benfica?

MF – Ter bola e jogar tendencialmente no meio-campo ofensivo.
R.P. – Na maior parte dos jogos em Portugal e em alguns no estrangeiro, a tendência é assumir o jogo, ser protagonista, ter bola, defender com poucos e fazê-lo com espaço nas costas. Se não vamos preparar os nossos jogadores para esta realidade, não estamos a prestar um bom serviço. Ou então o clube diz assim: ‘Meus amigos, o objetivo é ganhar a II Liga ou ter a melhor classificação possível.’ Mas não é isso que a direção nos pede e não é essa a essência do nosso trabalho. É óbvio que vamos perder mais vezes e não é por acaso que a equipa B nunca conseguiu, ao longo da sua história, ultrapassar os 50 por cento de vitórias. Mas como eu disse na rodinha agora em Penafiel, o meu último jogo após a derrota, temos derrotas, ainda ‘hoje’ perdemos e isto é um espaço de realidade de crescimento que não vai ser a realidade deles no futuro. O Rúben Dias tem a carreira que tem e está onde está – no Manchester City e na Seleção Nacional – e na equipa B esteve até à última jornada para não descer de divisão. E isso foi mau para ele? Impediu que ele chegasse onde chegou? Não impediu, mas quem só olha para os dígitos não percebe isso.

MF – (…)
R.P. –
Respondendo à pergunta, necessitava deste desafio e aparece-me um projeto que é muito similar ao do Benfica pela força e qualidade da sua academia, pelos jogadores jovens que saem dali, e que são muitos, mas também por ser um grande clube do Equador que luta por títulos e joga provas internacionais. Sinceramente, eu já estava a precisar desse desafio. Defini como meta na minha carreira desafiar-me e ir para o futebol de resultado, de rendimento, de elite e de competição, se isso fosse possível. Esta era uma oportunidade imperdível em termos desportivos e também financeiros.

MF – Quando chegou à equipa B do Benfica, em janeiro de 2019, sentiu logo que este era o passo seguinte a dar? Fazer essa transição definitiva para esse tal futebol de resultado?
R.P. –
Sim. Eu digo que não sentia falta há muito tempo deste novo desafio porque acabo por não fazer nenhuma época completa na equipa B. Entro em janeiro, faço meia época e a pandemia interrompe a segunda época. E agora saio sensivelmente a meio. Mas evidentemente que tinha noção que a equipa B era um passo fundamental para a minha progressão, até para fazer uma transição menos violenta do futebol de formação para o futebol profissional. Este passo era importantíssimo para mim e tinha de dá-lo. Mas se não surgisse esta oportunidade, provavelmente continuaria, até porque tinha contrato até 2023. Mas a cada ano e a cada passo que fosse dando, naquilo que estipulei para a minha carreira, o passo a seguir seria a competição pura e dura, o futebol de elite.

MF – Disse que essa transição menos violenta da formação para o futebol sénior foi importante. Fala-se muito das chamadas dores de crescimento dos jogadores, mas os treinadores também as têm?
R.P. – Têm! Quem está nos escalões de formação de Benfica, FC Porto ou Sporting, em 40 jogos anuais há dez ou 12 que são difíceis. No resto, com todo o respeito, só não sabemos por quantos vamos ganhar. E ninguém cresce na facilidade, sem ser na adversidade e nas coisas que nos desafiam. E nós só temos esse reduzido número de jogos para podermos desafiar-nos e ter algum equilíbrio. Estamos constantemente em dois momentos de jogo: organização ofensiva e transição defensiva: perdemos a bola e recuperamo-la em 10, 15 ou 20 segundos. Sejam os jogadores ou os treinadores, não se consegue vivenciar a sério aquele momento de organização defensiva. E, não tendo isso, também não há o momento da transição ofensiva. Em termos de competição há aqui um crescimento algo desequilibrado. Esta décalage nota-se e paga-se muito quando chegamos ao futebol profissional. Na formação, eu tenho uma taxa de vitórias de 98 por cento e até já cheguei a perder um campeonato com uma derrota. E os jogadores igual. Quando chegamos ao futebol sénior, todo o erro é penalizador e temos de estar em alerta constante. Vamos começar a perder mais vezes porque não estamos habituados a uma nova realidade. Mas essa nova realidade gera uma capacidade de adaptação e crescimento.

MF – Crescer na adversidade.
R.P – Exato. Temos de crescer, não há outra hipótese. E isto mexe connosco. Se eu for fazer uma resenha da minha carreira, a minha taxa de vitórias desce drasticamente na equipa B. Mas desceu comigo, como desceu com o Hélder, com o Norton de Matos ou o Bruno. Quanto aos jogadores, eles vivem muito tempo num mundo ilusório de que são muito bons por ganharem quase sempre com grandes goleadas. E quando chegam a esta realidade, para a qual nós alertamos, sentem que quando perdem a bola já não a conseguem recuperar porque o adversário já foi e que o colega atrás, que resolvia nos juniores, se calhar já não resolve. Passa-se de repente para um contexto de grande desafio e dificuldade. Isso leva-os para momentos de mais insucesso que os fazem crescer.

MF – Disse há pouco que nos escalões de formação o Benfica praticamente só põe em prática dois momentos do jogo: organização ofensiva e transição defensiva. Afinal, como é que um clube grande produz defesas-centrais? O Rúben Dias…
R.P. – [risos]. Lá está… Eu vou dizer a estratégia que usei durante seis anos nos juvenis. No processo de treino trabalhamos os momentos todos, mas o treino não é jogo. Ali, os defesas jogam sempre contra os mesmos avançado e vice-versa. Há uma situação que é quase comum.

MF – E o que fez para ultrapassar isso?
R.P. – Senti necessidade de obrigar os jogadores a ter essa resiliência a defender. Um jogador de equipa grande acha que ter bola no pé e ser muito bom tecnicamente é suficiente. Mas depois não consegue trabalhar sem bola, porque raramente está sem bola. Defini um período do início da época até, sensivelmente, novembro, em que passava o modelo de jogo. Quando sentia que ele estava consolidado, trocava uma unidade de treino a meio da semana por um jogo contra seniores. Ia escolher equipas do topo do Campeonato de Portugal, que sabia que tinham qualidade, e fazia um jogo-treino. Lembro-me que no primeiro jogo-treino que fizemos perdemos 8-1 contra o Amora, uma equipa que tinha um projeto para subir e com muita malta que tinha passado pela II Liga. Aquilo foi quase uma tragédia, mas era precisamente aquilo que eu queria.

MF – Que era…
R.P. – Que tivéssemos muitos momentos de defesa e que andássemos atrás da bola. Não é um jogo oficial, mas é um jogo: é melhor do que ter de treinar sempre a mesma coisa com os mesmos colegas. Também era importante que eles percebessem que ali não conseguiam fintar quatro e cinco adversários de forma consecutiva, que perdiam a bola mais rapidamente e que o jogo era mais agressivo e intenso. Até chegar à fase final, em abril, fazia um jogo todas as semanas. E acho que isso foi um upgrade muito grande para os expor. O balizar do estado em que estavam na aquisição dos conteúdos defensivos eram esses jogos, que eram também uma pré-preparação para a fase final, onde encontrávamos equipas fortes e já estávamos mais ou menos alinhados nos processos defensivos e de transição ofensiva. E também tínhamos outras coisas muito boas, que eram os torneios no estrangeiro: eu fartava-me de pedir para adiar jogos de campeonato para irmos a torneios no estrangeiro, onde apanhávamos os Barcelonas, os Manchesteres, os Reais Madrides, os Bayerns e por aí fora: essas equipas, por serem do nosso nível, também nos expunham a esse tipo de situações. Se não temos este tipo de estratégias, os jogadores crescem na facilidade.

MF – Mas, mesmo assim, essa exigência que têm de incutir para fomentar a evolução dos jogadores não os deixa 100 por cento preparados para as exigências do futebol sénior?
R.P. – Não deixa, porque aquilo é a exceção e não a regra e o corpo está sempre mais adaptado à regra do que à exceção. Depois dos jogos-treino, voltávamos à competição e tínhamos aquela facilidade de que falei. Mas é mesmo assim e não é apenas um problema de Portugal. Os treinadores ingleses, alemães e espanhóis, com que eu falei tantas vezes, têm o mesmo problema. Não tão vincado, porque são países maiores e a competitividade aumenta um bocadinho e aqui cingimo-nos aos grandes e pouco mais. Mas este é um problema transversal.

Florentino Luís foi um dos vários jogadores da formação do Benfica promovidos da equipa B à equipa principal a substituição de Rui Vitória por Bruno Lage

MF – No início de 2019, mal chegou à equipa B em janeiro perdeu logo vários jogadores para a equipa principal…
R.P. – Quando subi perdi oito: Zlobin, Florentino, Ferro e Jota para a equipa principal e mais quatro para equipa principal e quatro para a fase final de juniores.

MF – E este ano, por exemplo, ficou sem Gonçalo Ramos depois de um grande arranque de II Liga. Sente que nenhum treinador da equipa B teve uma missão tão difícil como a que teve nestes dois últimos anos?
R.P. –
Sinto! Aí, sem faltar ao respeito aos meus colegas, se olhar para trás vejo que as equipas eram muito mais experientes e o treinador da equipa A não puxava tantas vezes os jogadores do contexto da equipa B fosse para treino, fosse para jogo. A equipa que o Bruno Lage apanha [na equipa B] é muitíssimo experiente.

MF – Campeões europeus, por exemplo.
R.P –
Campeões europeus e até tenho aqui à minha frente, por curiosidade, o onze que o Bruno [Lage] utilizou em Arouca na última vez em que o Benfica B lá jogou: Zlobin, Willock, Keaton Parks, Pedro Amaral, Florentino Luís, Saponjic, Benny, Jota, Kalaica, Alex Pinto e Ferro. No banco estavam Nuno Tavares, Nuno Santos, Daniel dos Anjos, Úmaro Embaló, Tiago Dantas e Pedro Álvaro. Quando pegámos na equipa, ela estava em terceiro. E se me perguntarem qual foi dos melhores trabalhos que fiz no Benfica, eu respondo que foram estes seis meses.

MF – E porquê?
R.P. – Esta equipa estava em terceiro, era muitíssimo experiente, tinha muita qualidade e não havia muito vai e vem de jogadores entre o Rui e Bruno. Quando eu pego na equipa, tenho ali três ou quatro jogos em que a equipa se mantém, mas depois o Bruno leva estes quatro e outros quatro vão para a fase final de juniores: todos titulares. A seguir a isso temos uma série de três derrotas consecutivas e eu decidi, puxando jogadores dos sub-23 e dos juniores, que juntei aos da equipa B que jogavam menos, fazer uma pré-época. Ao fim da segunda derrota disse que não tínhamos de nos preocupar com a observação dos adversários porque a nossa equipa era nova e tinha de treinar essencialmente para ela e não em função da forma como jogavam os adversários.

MF – Teve de construir novas dinâmicas?
R.P – Tal e qual. Juntar as peças todas e fecharmo-nos. Vínhamos de duas derrotas, ainda tivemos uma terceira, mas depois tivemos uma série de quatro vitórias seguidas. Que nem o Bruno tinha conseguido. A partir daí, com menos oito titulares na equipa, perdemos o terceiro lugar na última jornada para o Estoril. Em termos de contexto, chegar a meio, levar com este impacto e ter de renovar a equipa com o campeonato em andamento e ainda conseguir um quarto lugar apesar de todas as dificuldades, este foi de longe um dos meus melhores trabalhos no Benfica. Foi mesmo muito complicado.

MF – Foi tendo outras dificuldades?
R.P. –
O Bruno tinha uma forma de trabalhar em que não fazia jogos-treino. Ou seja: a equipa A jogava e ele no dia a seguir, em vez de fazer um jogo-treino – como o mister Jorge Jesus faz muitas vezes – com os que não jogaram contra a equipa B, levava dez, 12 ou 13 jogadores da equipa B e fazia um treino. Queria passar conteúdos dele àqueles jogadores e era perfeitamente legítimo. Se calhar eu faria o mesmo! Mas posso dizer que tive semanas – naquelas em que a equipa principal jogava domingo, quinta-feira para a Liga Europa e depois segunda-feira – em que eu só tive a equipa toda junta na véspera do jogo. E o treino de véspera era o que tinha para preparar o jogo que aí vinha. Eu sou um fanático defensor do treino e digo que, para pôr uma equipa a jogar da forma que entendo, o processo mais importante é o do treino: é só isso que permite dar comportamentos aos jogadores para que joguem de determinada forma. Apenas vídeo não chega: o corpo e o cérebro precisam de passar pelos problemas e experiências dos jogos e isso só é possível recriar no treino. Tínhamos na equipa B uma amálgama de jogadores que, graças a Deus, eram jogadores bem formados, que percebiam o jogo e iam resolvendo um ou outro problema, mas não conseguíamos ser uma verdadeira equipa. Já para não falar de estar até ao último dia sem saber ainda quem é que vai descer da equipa A para B. É um contexto de instabilidade dificílimo, mas que eu acho que é necessário, atenção. Isto é uma constatação de um facto e não uma crítica. Não encontro ver outro tipo de filosofia para potenciar os jovens jogadores.

MF – Mas isso também pode ter consequências desportivas. É que uma equipa B não pode subir, mas pode descer. Que impacto teria algo assim no projeto?
R.P. – Na minha opinião seria o fim do projeto. Descer de divisão seria um tiro autêntico no porta-aviões naquilo que é a exigência, a competitividade da II Liga e a preparação de que os jogadores precisam. Seria claramente um revés na preparação e no crescimento dos jogadores: não descer de divisão é o grande objetivo desportivo da equipa B do Benfica.

MF – E os jogadores conseguem lidar bem com essa nova pressão quando transitam de um contexto mais acessível para um bastante diferente, mais exigente e de maior responsabilidade?
R.P. – Depende dos casos. Há uns que lidam melhor e outros pior. Há uma coisa que mexe muito com eles, assim como mexeu comigo: a derrota. E quando não estamos habituados a algo, temos rejeição ou, pelo menos, alerta. Da nossa parte, enquanto treinadores, temos de saber converter o momento da derrota e do insucesso em ensinamento para os jogadores: perceber porquê e como é que perdemos e utilizar isso para a correção. O que fica para nós é não pôr em causa o nosso processo e as nossas ideias. No fundo termos a capacidade de não funcionar como adepto e evitar que as derrotas gerem dúvidas sobre tudo e mais alguma coisa. Se tivermos muitas derrotas, é óbvio que alguma coisa está mal, mas isso não aconteceu: o máximo que aconteceu foi um ciclo de seis derrotas na equipa B, mas todas pela margem mínima, algumas no último minuto e por vezes com muitos juniores. Competimos e perdemos no detalhe. O problema é quando não conseguimos competir.

Foto: SL Benfica

MF – O Renato sempre foi muito franco nas conferências de imprensa e algumas delas tornaram-se até virais, por falar abertamente dos problemas dos jogadores, encostando-os à parede e mencionando alguns vícios que eles traziam da formação e que os faziam cometer erros pouco aceitáveis. Essa comunicação para fora também era feita com o objetivo de os fazer crescer mais rápido?
R.P. – Isso aconteceu após um jogo em Coimbra. Para mim, quando um jogador joga futebol de forma profissional, e então se joga no Sport Lisboa e Benfica, há uma coisa que é inegociável: o esforço, o trabalho, a superação e o jogador poder dizer que deixou tudo em campo, mas que o adversário foi melhor. Ou até ‘eu perdi porque tive um erro técnico’. Nunca me ouviram em nenhuma conferência de imprensa eu criticar os meus jogadores por erros técnicos ou por erros táticos. Nesse dia, eu não precisei de chegar ao GPS para perceber que ninguém tinha corrido sequer o mínimo para jogar no Benfica e competir na II Liga. Quando cheguei ao balneário disse-o a todos. Isto é um pau de dois bicos, porque há que diga que isto não devia ser público e que devia ter ficado no balneário. Sim: há coisas que são no balneário, mas, para mim, há coisas que têm de ser públicas. E não podemos tratar os jogadores como prima-donas. Os jogadores têm uma vida de exceção para o bem e para o mal. E uma das responsabilidades é que são jogadores de um clube. A qualidade técnica não se compra num supermercado, a qualidade tática vai-se adquirindo, mas o correr mais ou menos depende da vontade e da cabeça do próprio jogador. O que aconteceu naquele dia foi que houve gente que não quis jogar no Sport Lisboa e Benfica e isso eu não posso admitir. Por isso, teve de ser público. Correr, lutar e deixar tudo em campo não é negociável. Sempre que isso aconteceu, fui altamente crítico. As pessoas também têm olhos e há diretores, presidente e adeptos que veem os jogos: se eu não disser nada, dá a sensação de que sou conivente com uma situação dessas ou que não tive capacidade de análise.

MF – Essa mensagem tinha impacto positivo nos jogadores no jogo seguinte?
R.P. – Notei até no treino. O ter dito que havia uma equipa sub-23 com jogadores que queriam ir para a equipa B e que se não fosse com aqueles seria com outros… Isto é o Sport Lisboa e Benfica: é um grande clube onde muitos querem estar, não só jogadores, mas também treinadores. E havendo qualidade transversal, se não é bom com A, é com B; e se não é com B é com C. Esse alerta faz com que eles reajam logo no treino a seguir. Os jogadores têm de sentir a perceção de ameaça. Ninguém vai ganhar os jogos todos e toda a gente vai ter derrotas, mas a capacidade com que os jogadores gerem isso é que os faz serem de eleição. É isso que nos faz peneirar e perceber quais são os que estão mais preparados para chegarem lá acima.

MF – Quais foram os jogadores com melhor capacidade psicológica nesse sentido com quem trabalhou?
R.P. – Rúben Dias… Pedro Rebocho… Guga… Yuri Ribeiro… Renato Sanches… João Félix… Gonçalo Ramos… João Ferreira… Tomás Tavares. E também muita malta da geração de 2001. Mais atrás, lembro-me também do Miguel Vítor e do Romeu Ribeiro. E também o Guedes. Mas o Guedes não era tanto a resiliência.

MF – Então?
R.P. – O Guedes tem um mundo à parte e desvaloriza a pressão. Estar a ler o jornal na esplanada ou jogar um Benfica-Sporting é a mesma coisa para ele. Estou sempre a dizer isto: fazemos um ranking dos dez golos mais bonitos da formação do Benfica e o Guedes está em quatro ou cinco e são todos contra o FC Porto ou o Sporting. Se calhar estou a esquecer-me de alguns, mas esta franja de jogadores tem estes pontos que se tocam: o querer mais, a resiliência, o querer aprender e o inconformismo com a derrota. Porque havia sempre aqueles momentos em que depois de um empate ou de uma derrota havia ali uma certa galhofa no autocarro e que às vezes me fizeram saltar a tampa e ir lá atrás dar uns gritos porque o Benfica tinha acabado de perder, mas estes não: cara fechada, de poucos amigos. Pelo perfil, via-se logo que iam lá chegar. Não sabíamos ao certo onde, mas iam lá chegar.

MF – Esse é o perfil de jogador que já é profissional antes de o ser?
R.P. – Isso mesmo. É aquele que diz que com mais técnica ou menos técnica vai superar os obstáculos. Por exemplo, o Rúben Dias não era um portento de técnica nos juvenis, mas o trabalho, a dedicação e a seriedade dele foram colmatando isso. Isso são logo indicadores de mentalidade. E o futebol hoje em dia é muito isso. Por isso é que quando o Rúben chegou à equipa A e se impôs com naturalidade e agora fez o mesmo no Manchester City, não me espanta: o jogo todo começa aqui [aponta para a cabeça]. Aqui é que está a informação sobre o conhecimento do jogo, que ações técnicas devemos pôr em prática, mas acima de tudo a estrutura mental e psicológica para suportar estas ações técnico-táticas. E se ela for frágil…

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