Vá-se lá entender o amor.

Como se fosse possível explicá-lo!

São rotas que se cruzam, caminhos que encontram no meio do nada, vindos sabe-se lá de onde. Atalha-se ali por coiso! E pronto. Acontece.

Fraca explicação?

Então vamos lá pensar como justificar que um miúdo de seis ou sete anos, natural de Liverpool, seja absolutamente fanático… pela seleção de Portugal e pelo futebol cá do burgo?

A inocência?

Pode ser. Mas imaginemos que essa criança cresce, e com ela aumenta também a paixão.

Suponhamos ainda que a seleção portuguesa derrota a inglesa a cada confronto. Sempre com o miúdo de Liverpool a torcer pela equipa das quinas.

Mais difícil, não?

Mas se ainda não está convencido, continuemos com o exercício.

A criança torna-se adolescente, alimenta a paixão de forma arrebatada, como só os adolescentes entendem. Até que a paixão se torna amor de um jovem adulto.

E há lá distâncias capazes de impedir o amor?

Nem por sombras. E todas as formas de o alimentar são válidas. Vai daí, nasce um site inglês inteiramente dedicado ao futebol português: Próxima jornada.

Bem, agora que falamos nisso, a próxima jornada de Aaron Barton, o irredutível apaixonado de quem falamos, vai ser bem longa.

É que não há futebol, mas a paixão não se apaga. Por isso, este jornalista desportivo inglês lançou-se num desafio duro: caminhar de Liverpool ao Jamor.

Porém, aqui não é só loucura. Por muito saudável que seja aquela que está aqui em questão.

Há uma causa maior por detrás: a saúde. Aaron Barton pretende com o seu gesto angariar fundos que irá depois repartir de forma igual pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) português e pelo correspondente National Health Service (NHS) inglês.

«Era suposto eu ir para Lisboa em junho e ficar até setembro. Mas por causa do Coronavírus, isso não é possível. Então, lembrei-me que tinha de fazer alguma coisa para não estar só fechado em casa», começa por explicar Aaron, em conversa com o Maisfutebol.

«Já fui a muitos estádios em Portugal, mas nunca fui ao Jamor. Mas gostava mesmo muito de ir, porque é um estádio especial. Se me perguntarem se eu preferia ir a Wembley ou ao Jamor, eu diria, sem dúvida, o Jamor. Todos os dias! Pode parecer um pouco maluco, mas é algo que tenho preso a mim», diz, continuando a explicação.

«Como na minha ida a Portugal tinha planeado ir conhecer o Estádio do Jamor - queria ir à final da Taça de Portugal – decidi ver qual a distância entre a minha casa e o Estádio do Jamor. São 1.704 km em linha reta. E pensei: não posso ir a Portugal, mas posso caminhar essa distância e ir relatando a minha caminhada», explica-nos.

No primeiro contacto que fazemos com Aaron, apanhamo-lo a meio da caminhada diária. Por isso, marcamos uma hora e confirmamos a veracidade da história da pontualidade britânica.

De quinas ao peito pelos campos de morangos de Liverpool

No desafio que lançou a si mesmo, Aaron Barton propôs-se a cumprir a distância até ao dia 31 de dezembro e a angariar 1000 libras, cerca de 1150 euros, até ao fim do percurso.

Para isso, sabe que precisa de caminhar sete quilómetros por dia. Nos primeiros dois dias, já cumpriu 24 km. E os donativos já ultrapassam as 500 libras, conforme se pode perceber na página da iniciativa.

«O objetivo inicial foi conseguir 1000 libras, mas esse é apenas um objetivo que tinha de ser traçado, eu espero que consigamos mais do que isso», sublinha.

Com tantos quilómetros para percorrer, Aaron quer deixar bem longe um dos principais inimigos de qualquer amor: a monotonia.

«Tenho sorte, porque na cidade onde moro há muitas coisas diferentes que posso visitar. Temos desde monumentos, a edifícios, mas também campos de morangos», detalha, antecipando aquela que será uma das etapas rainhas desta prova.

«Nos próximos dias conto caminhar até aos dois estádios de Liverpool: Goodisson, que fica a cerca de 20 km, e depois são mais dois até Anfield. Nesse dia, vou fazer perto de 40 km, com o regresso a casa», nota, antes de sublinhar, com português à mistura, um ponto importante: «Vou tentar vestir sempre uma camisola da ‘seleçau’ de Portugal. Tenho muitas, posso ir mudando».

Mas afinal, porque surge o SNS português na equação, se o Reino Unido é um dos países que está a sofrer mais com a pandemia da Covid-19?, questionamos.

«Escolhi apoiar também o SNS porque, como jornalista, eu escrevo sobre Portugal e o futebol português. 40 por cento dos meus seguidores são de Portugal, ou são portugueses que moram nos EUA, Canadá ou Inglaterra. Por isso, para mim faz sentido que seja assim», justifica, antes de fazer uma declaração de amor a um país que já perdeu a conta às vezes que visitou.

«Portugal tem-me dado tantas alegrias. Sempre que visito o país, sinto-me mesmo bem. E não é apenas o futebol: desde que comecei a visitar Portugal, apaixonei-me pelas pessoas, pela cultura, pela forma como encaram a vida, pela comida… Se fosse só futebol, a minha paixão não seria tão grande. Porque também gosto de futebol espanhol, italiano, brasileiro… Mas a ligação que tenho com Portugal é mais profunda e não a consigo explicar», resume.

Bandeira à janela, ‘king Eder’ e ‘coraçau’ português

Voltamos ao miúdo que deu início a esta história de amor e que nem sequer viveu de forma consciente o início da paixão. Ele explica.

«Quando tinha seis ou sete anos comecei a acompanhar futebol. Sou de Liverpool, que é uma cidade que vive o futebol de uma forma louca. E comecei a ver Europeus, o primeiro de todos foi o de 2000, quando Portugal jogou contra Inglaterra e… oh my God! Aquela equipa…», exclama, sem conseguir impedir-se de gaguejar: «Oh, Rui Costa, Figo, Vitor Baía, Jorge Costa… eram incríveis».

Aaron Barton, com oito anos, equipado com as cores de Portugal

Vá-se lá saber porquê, o ano de 2002, do Mundial na Coreia do Sul e no Japão, apagou-se completamente das memórias que Aaron partilha connosco. Mas a história muda de figura dois anos depois.

«Em 2004, eu só queria que Portugal jogasse contra Inglaterra. E aconteceu! Claro que eu estava a torcer por Portugal, e a minha família dizia ‘não, não. Não podes apoiar Portugal!’. Mas tinha de ser. Era a primeira vez que via aquela equipa desde 2000, eu esperei quatro anos por aquele momento», revela, sem esconder o entusiasmo.

Uma emoção, de resto, que parece transportar diretamente do corpo daquele menino de oito anos, que, sem saber, cumpriu em Liverpool um pedido de Scolari.

«No meu bairro havia muitas casas com a bandeira de Inglaterra. Mas quando a minha mãe ia para a cama, eu ia ao meu quarto punha a bandeira de Portugal à janela», lembra, numa gargalhada.

A reação da mãe à rebeldia do filho, porém, teve muito fair-play. E ajudou a alimentar a paixão.

«Quando ela viu, disse-me que se eu queria manter a bandeira de Portugal, podia mantê-la. E comprou-me o equipamento oficial de Portugal do Euro 2004», relata, confidenciando o ritual que passou a acompanhá-lo todas as semanas daí em diante.

A bandeira de Portugal à janela do quarto de Aaron Barton passou a ser habitual

«Nas escolas de Inglaterra, veste-se um uniforme de segunda a quinta-feira, mas à sexta-feira podemos levar a roupa que quisermos. E normalmente, os miúdos aproveitavam para vestir camisolas de equipas de futebol: do Liverpool, Everton, Inglaterra, Brasil, Espanha… E eu usava a minha camisola de Portugal todas as sextas-feiras!», assegura.

Deixámos Aaron começar a falar e perdemos o controlo da conversa. Mas o protagonista aqui é ele, por isso basta deixar rolar. E de 2004, saltamos para o Mundial da Alemanha.

«Em 2006, eu já era um pouco mais velho e Portugal voltou a jogar contra Inglaterra. E nessa altura, eu já conseguia ver online vários jogos do campeonato português: via o Sporting, o Sp. Braga, o Benfica, o FC Porto, o Vitória… Mas adorava mesmo era a seleção!», reforça.

«Sempre que chegava uma grande competição, Portugal estava próximo de ganhar, mas depois perdia. E os meus amigos perguntavam-me: ‘porque apoias Portugal, eles nunca vão ganhar nada’. And I said: ‘Calma, calma, calma! We will win’.»

Nós vamos ganhar.

É sempre assim. Quando nos fala da seleção portuguesa, Aaron agarra na primeira pessoa do singular e vai por ali fora. Agora, de Liverpool até Paris. Sempre Paris.

«Chegou 2016, e toda gente dizia que Portugal não tinha hipóteses. A imprensa inglesa escrevia que ia ganhar Inglaterra, e que se não fosse Inglaterra, seria a França», conta quem nunca se deixou derrotar à partida.

«Eu perguntava sempre: e Portugal? Nós temos o Cristiano Ronaldo, temos o Renato Sanches em excelente forma, uma defesa de betão com o Pepe e o Fonte, o Rui Patrício na baliza… Temos uma equipa muito equilibrada, com jovens e jogadores mais experientes. Mas todos diziam que Portugal não tinha hipótese. Que ia passar a fase de grupos, mas depois era eliminado nos quartos de final, como acontecia sempre.»

O destino desta vez, contudo, seria diferente. Apesar dos primeiros sinais não terem sido os melhores.

«Chegámos ao Europeu e não jogámos muito bem na fase de grupos, empatámos todos os jogos. Mas depois ganhámos nos quartos de final, ganhámos nas meias… e depois a França na final. Todos diziam que a jogar em casa, a França ia ganhar facilmente. Chegámos ao prolongamento, sem o Ronaldo logo no início e eu só pensava nos penáltis, vamos a penáltis, vamos a penáltis. Mas quando o king Eder passou pelo Koscielny, chutou e marcou aquele golo, WOW!! It was incredible, mesmo incrívél!», descreve, numa emoção que nos transporta para aquela tarde quente de julho.

«Ainda para mais, tendo sido o Eder! Um jogador com quem tanta gente gozava. Mas que com aquele golo se tornou uma lenda. Um jogador que vai ser recordado para sempre», defende.

Perante um relato tão apaixonado, deixamos que inconsciência leve a melhor e questionamos: ‘de onde vem essa paixão?’.

«É um amor que não consigo explicar. As pessoas perguntam-me sempre isso. Porque eu sou de Liverpool, de Inglaterra, onde há tantas equipas grandes. Porquê esta paixão pelo futebol de um pequeno país como Portugal? Mas eu não sei explicar. Acho que o amor nunca dá para explicar. Quando me perguntam, eu ponho a mão no peito e digo ‘é o meu coraçau’!», remata.

Escrever para os «Lopes e Fernandes» que não leem português

Formado em Literatura Inglesa e Ensino, há um ano, Aaron Barton deixou o ensino para se dedicar ao jornalismo, focado no futebol português, depois de desafiado por um amigo com quem partilhou lamentos sobre a inexistência de informação especializada, escrita em inglês.

«Eu leio o Maisfutebol, A Bola, o Record, tudo. Mas é tudo em português. Não havia nada em inglês sobre o futebol português. Claro que podes traduzir os sites, mas eu gostava que houvesse esta informação em sites ingleses. E então, um amigo disse-me: porque não crias um? Tu és formado em inglês, adoras escrever, adoras o futebol português e provavelmente sabes mais sobre isso do que qualquer outro inglês…», contextualiza.

O Próxima Jornada começou aos poucos, com «um ou outro artigo, algumas coisas de análise», mas num ano o crescimento tem sido gradual, muito graças à diáspora portuguesa.

«Comecei por ter 50 pessoas, depois 100, 500, 1.000 e agora tenho 10.000 seguidores. Muitos dos leitores são dos EUA e Canadá, segundas gerações de portugueses. Tenho mutos Lopes e Fernandes, mas muitos deles não falam português. E assim, encontram informação sobre o desporto que amam, do país ao qual têm ligação», orgulha-se.

Um dos impulsos para o projeto de jornalismo que fez Aaron Barton abandonar o ensino, surgiu devido à transferência de Gonçalo Cardoso do Boavista para o West Ham. E teve origem… no próprio clube.

«Um dos jornalistas da equipa de comunicação do West Ham, quando o Gonçalo Cardoso assinou pelo clube, perguntou-me o que eu sabia sobre ele. Eu tinha visto alguns jogos do Boavista, e eles propuseram-me escrever um artigo sobre ele, o que me surpreendeu», recorda.

Aproveitando a onda, o jornalista deixou-se ir na onda e pediu para entrevistar o jovem defesa.

«O clube foi muito simpático, disseram-me que sim e, de repente, eu estava a entrevistar um jogador da Premier League».

Esse foi apenas o início. Seguiu-se Ricardo Pereira do Leicester, entretanto também entrevistou Nuno Gomes, que assume ser um dos jogadores portugueses preferidos. Os outros? Podem ser futuros alvos do Próxima Jornada.

«Gosto muito do Deco, do Rui Costa – que lamento não ter visto a jogar em Inglaterra, mas que continuava mágico quando voltou ao Benfica -, o Luís Figo, Nuno Gomes – aqueles golos contra Inglaterra em 2000 e contra Espanha em 2004!!! –; Cristiano Ronaldo, claro, e o Quaresma. Adoro o Quaresma também», assume.

Para já, porém, e para que não se esqueça, o objetivo imediato é outro. Virtualmente, Aaron Barton está a caminho do Jamor. Porque apesar de terem sido futebolistas a fazerem com que se apaixonasse por Portugal, são outros que este inglês quer ajudar.

«Sinto que às vezes não valorizamos o trabalho que é feito por médicos e enfermeiros e outros profissionais de saúde. E isso acontece tanto em Inglaterra como em Portugal. Muitas vezes vemos os futebolistas como os nossos heróis, mas os verdadeiros heróis são aqueles que estão sempre disponíveis para nos salvar a vida», enaltece.

E esta ideia é muito simples de entender. Bem mais simples do que aquela coisa do amor.