Não há palavras na entrada da Académica em campo quando joga em casa.

A «Balada de Coimbra» tocada pela inconfundível guitarra portuguesa de Carlos Paredes torna único o início de cada jogo da Briosa. E qualquer pessoa que ouça aqueles primeiros acordes sabe imediatamente qual o estádio em que está.

É arrepiante. A cada jogo no novo «Calhabé».

E também o foi naquele final de tarde do dia 8 novembro de 2012.

Não foi noutra vida. Foi há menos de 10 anos.

Meses depois de conquistar a segunda Taça de Portugal do seu historial, vencendo o Sporting na final com um golo de Marinho, a Académica fazia a Europa do futebol abrir a boca de espanto.

Em Coimbra, num jogo da fase de grupos da Liga Europa, a Académica derrotava o At. Madrid por 2-0, com um bis de Wilson Eduardo.

E não era um At. Madrid qualquer. A equipa já então treinada por Diego Simeone visitou a cidade dos estudantes quando era o segundo classificado da Liga Espanhola, detentor da Liga Europa e da Supertaça Europeia e a viver um ciclo de 16 jogos sem perder nas competições europeias.

A invencibilidade acabou ali, perto do Mondego, entre o bis de Wilson Eduardo e as muitas mudanças feitas por Simeone no onze titular.

Edinho, avançado internacional português esteve nesse jogo. Como estivera na conquista da Taça de Portugal. E os momentos que viveu com a camisola da Académica vestida deixam-lhe uma mágoa com o que agora aconteceu ao clube.

«Doeu-me bastante ver confirmada a descida da Académica. É um clube com grande história, que tive o orgulho enorme de representar. Sempre fui muito acarinhado e tive a honra de deixar o meu nome na história», introduz antes de revisitar as duas épocas vividas em Coimbra.

«Foram anos marcantes. Quando fui para a Académica não estava a jogar no Málaga e foi das melhores coisas que fiz na minha carreira. Porque apesar de o objetivo do clube ser lutar para não descer, foi na Académica que me reencontrei com os golos e, sobretudo, com o gosto pelo futebol. A juntar a isso ainda vencemos a Taça de Portugal e fomos à Liga Europa».

Inesquecível, pois claro. Como aquela vitória sobre o At. Madrid.

«Tudo nos correu de feição. Pode dizer-se que o At. Madrid não estava com os melhores jogadores, mas o que ficou escrito na história foi que a Académica ganhou aquele jogo», orgulha-se.

E o que dizer da conquista Taça de Portugal, num Estádio do Jamor lotado, frente ao superfavorito Sporting?

«Vencer a Taça foi provavelmente o momento mais marcante da minha carreira. Foi quando conquistei o meu título mais importante no futebol português. E foi algo mágico fazê-lo a envergar aquele escudo», sublinha o agora jogador do Torreense, de 39 anos.

«A Taça e a participação na Liga Europa podiam ter impulsionado a Académica»

Um orgulho que ainda está bem vivo.

Quem também não esquece a Académica e essas duas épocas é, naturalmente, Pedro Emanuel.

Afinal, foi na primeira época como treinador principal que o técnico venceu a Taça de Portugal, que lhe deu o direito de disputar a Liga Europa na temporada seguinte.

Mas não é só isso que torna especial a Académica para o antigo defesa-central.

«No tempo que passei lá, deu para perceber que era um clube que não tem inimigos. Eramos sempre bem-recebidos em todo o lado. Pela história que carrega e por tudo o que representa para a sociedade pelos valores que defende, o legado da Académica gera uma enorme simpatia em todos», defende.

Nesse sentido, a notícia da descida de divisão não deixou indiferente o técnico de 47 anos.  

«Vi a descida com muita tristeza. Os que gostam e torcem pela Briosa sabem o quão dolorosa esta situação é. E é agora que os verdadeiros academistas devem unir-se para fazer o clube regressar aos palcos que merece. Tenho a certeza que a Académica se vai reerguer, como briosa que é», vaticina.

Apesar da mágoa com que assistiu à queda da Académica no terceiro escalão do futebol nacional, Pedro Emanuel reconhece sinais preocupantes que já via nos últimos anos e que podem ajudar a explicar o sucedido.

E volta às épocas qua passou em Coimbra para explicar essa opinião.

«Nunca pensei que fosse acontecer isto, mas notou-se nos últimos anos um afastamento da cidade e das pessoas do clube. E sem o apoio do público, dificilmente as equipas saem de momentos menos bons como os que a Académica viveu este ano. O clube começou a cair numa espécie de marasmo e sem incentivo extra do público, aconteceu esta descida.»

Isto porque apesar de ser um clube conhecido pela fidelidade de algumas centenas de sócios que raramente falham um jogo, Pedro Emanuel sente que faltou dar um passo em frente no momento mais alto dos anos recentes da Briosa.  

«Pensei que a conquista da Taça e a participação na Liga Europa, pudessem permitir fazer regressar a Académica a um nível que já merecia e que na altura estava distante há algum tempo. Aquele podia ter sido momento certo para impulsionar o clube para outro nível», acredita.

«O movimento de apoio que houve durante o nosso percurso na Taça deixou de acontecer nos anos seguintes. A descida depois foi uma inevitabilidade, e esta é uma queda ainda maior. Mas é a realidade que existe e não adianta procurar culpados, mas soluções», receita Pedro Emanuel.

«É uma situação que não é só má para o clube e a cidade, também é mau para o desporto nacional. Acho que todos os que gostam de desporto ficam tristes por verem esta descida. Agora resta unir esforços para enfrentar a situação e fazer a Académica regressar aos campeonatos profissionais. E eu vou ajudar no que puder para que isso aconteça», remata.

Uma história que se confunde com a do país e do futebol português

Uma vida cheia de histórias.

Fundada em 1887, a Associação Académica de Coimbra (AAC) disputou o primeiro jogo de futebol em 1912, iniciando aí um percurso que fez das sucessivas equipas vestidas de preto um dos clubes mais acarinhados pelos adeptos do futebol português

Mas o título de «histórico» não vem apenas dos anos de vida do clube de Coimbra.

Desde que há campeonatos nacionais (1934-1935), a próxima época será a primeira que não terá a Académica numa das duas primeiras divisões. Uma mancha que surge no currículo academista ao fim de 88 anos.

A Briosa é o nono clube com mais presenças na primeira divisão, num total de 64, e foi o primeiro vencedor da Taça de Portugal, ao bater o Benfica na final de 1939.

Mas são vários os jogos dos estudantes que ficaram marcados na história do futebol e que vão para lá dos títulos. Porque a Académica é muito mais do que um clube de futebol.

E na sua história centenária, no que ao futebol diz respeito, talvez mais até do que as conquistas, é recordado célebre episódio em que a equipa da Académica aproveitou uma final da Taça de Portugal para, em plena ditadura, afrontar o regime.

Falamos, claro, da final de 1969, ano marcado pela crise estudantil em que milhares de alunos da Universidade de Coimbra saíram à rua para exigir ao regime «democracia e melhor ensino».

A repressão policial foi dura e resultou na prisão de vários estudantes, numa altura em que o futebol era diferente e em Coimbra, vários jogadores eram também estudantes universitários.

Apurada para a final em pleno clima de tensão e já depois de um primeiro protesto na meia-final em que a Académica eliminou o Sporting, a final no Jamor transformou-se no que é descrito como o maior comício contra a ditadura do tempo do regime, com os jogadores a associarem-se ao movimento.

A tensão foi tal que nenhuma das principais figuras do regime marcou presença na final cuja transmissão televisiva foi também proibida.

Impedidos de assinalar o «luto académico» nos equipamentos – a intenção de jogar de branco foi recusada -, os jogadores da Académica arranjaram forma de levar adiante o protesto, entrando em campo de capas negras aos ombros.

E mesmo perdendo esse jogo, a Académica ganhou. Ganhou pela coragem em tempos que a coragem era mal vista. Ganhou por não se esquecer dos seus.

E conquistou o respeito de todos.

«Ver a Académica tombar é uma dor de alma»

Parece uma outra vida.

Nessa tal final da Taça de Portugal de 1969, mas já a vestir a camisola do Benfica, estava Toni.

O mesmo Toni que na época de 1966-1967, a sua segunda enquanto sénior, numa equipa treinada por Mário Wilson, ajudara a Académica a conseguir a melhor classificação de sempre no campeonato: o segundo lugar, apenas atrás do Benfica.

Um Toni que fala com amargura da descida da Briosa à Liga 3.

«Ver a Académica tombar é uma dor de alma para mim. É uma dor para jogadores, treinadores, adeptos e todos aqueles que viveram e gostam um clube suis generis no panorama nacional», começa por dizer.

«Em Portugal, era-se do Benfica, do Sporting ou do FC Porto, mas era-se também da Académica», sublinha quem cresceu em Anadia, a poucos quilómetros da cidade conimbricense.

Toni (à direita) com a camisola da Académica - foto Twitter Académica

Aos 75 anos, o antigo jogador e treinador que se celebrizou ao serviço do Benfica e da seleção nacional olha para a evolução do chamado «desporto-rei» como um dos grandes culpados pelo que aconteceu a um clube que se distinguia dos demais.

«Aquilo em que o futebol se transformou, que é uma verdadeira indústria, mudou a Académica. Porque na sua essência, o que distinguia o clube era a formação social, como homens. O incentivo à formação académica. Ali, jogava-se futebol e ao mesmo tempo estudava-se. Por isso, quem queria estudar e manter-se no futebol ia para a Académica», recorda.

«A história do clube está cheia de gente que se formou e se tornou figura de relevo nas mais diversas áreas, conciliando o futebol com formação académica», reforça, deixando um lamento: «Na Académica essa génese ainda não morreu totalmente, mas foi obrigada a mudar e adaptar-se»

Agora, apesar de afastado da cidade de Coimbra há várias décadas, Toni reconhece ainda um sinal que defende não se ter alterado muito com o tempo.

«A cidade de Coimbra nunca foi extremamente ligada à Académica. O clube tinha e tem os adeptos fiéis, mas depois a restante massa adepta era muito flutuante, à base dos estudantes que vão passando na cidade e apoiam o clube porque essa é uma ligação que se cria. Mas depois seguem as suas vidas e o clube continua», nota sobre o clube cuja última presença na Liga aconteceu na época 2015-2016.

«Um futebol português forte tem de ter a Académica no melhor patamar»

Esse distanciamento entre a cidade e a Académica é também apontado por um histórico do clube de Coimbra: Pedro Roma.

O guarda-redes que é um dos jogadores com mais partidas disputados com a camisola da Académica na Liga passou duas décadas da sua carreira em Coimbra, onde foi capitão e se tornou símbolo.

À distância, o agora treinador de guarda-redes da seleção do Bahrein lamenta o «divórcio» da cidade com o seu clube mais representativo no panorama desportivo nacional.

«A Académica tem muitos adeptos, mas Coimbra não parece unida em torno da instituição que representa uma historia centenária. É necessário que isso mude, que todos os que vivem e sentem verdadeiramente o clube e a cidade mudem de atitude, para que seja possível inverter este mau momento», defende, considerando que «o divórcio entre a cidade - forças vivas, tecido industrial, comércio - e a Académica ajudou a este desfecho.»

O técnico de 51 anos considera mesmo que o contexto de Coimbra dificulta bastante a existência de equipas na alta-competição nacional. O que se percebe ao olhar para a ausência de equipas da cidade no topo das diferentes modalidades desportivas.

«Coimbra não tem exigência competitiva nem militância associativa para levar um clube ao mais alto nível. Coimbra também não tem economia com pujança e, sobretudo, com tradição em investimento robusto e sustentado no desporto. Coimbra não tem instituições que verdadeiramente olhem a prática desportiva de elite como um aliado. Coimbra não tem dimensão, por si e no âmbito da sua região de influência, para alimentar projetos de alta competição, necessariamente dispendiosos», lamenta.

O cenário da descida, por isso, só pode surpreender quem não conhece o contexto. Ainda que Pedro Roma não deixe de lamentar o que aconteceu à Briosa.

«Sinto uma grande tristeza por ver uma instituição como a Académica descer de divisão. Passei 20 anos da minha carreira desportiva nesta casa. Houve momentos de alegria com as subidas de divisão, permanências na Liga, conquista da Taça Portugal, assim como momentos difíceis quando descemos à II Liga. Um futebol forte tem de ter a Académica no melhor patamar do futebol português», defende.

«É preciso reerguer a Académica, mas não é com ideias coladas com cuspo»

Nos últimos dias, foram várias as mensagens de apoio à Académica. Uma das mais emocionadas foi a de Sérgio Conceição, treinador do FC Porto que fez a sua formação enquanto jogador na Briosa, clube que também treinou.

E todos aqueles com quem o Maisfutebol falou deixam o mesmo desejo de que a Académica se reerga o mais rapidamente possível.

«A descida está consumada. Agora há que regenerar o clube, aproveitando o grande universo academista e encontrar um novo rumo para uma nova Académica», receita Toni.

«É preciso perceber o que aconteceu para chegar a este ponto e a partir daí criar algo sustentado e não ideias coladas com cuspo. Já foram cometidos vários erros, agora é preciso definir um rumo que permita devolver a Académica ao sucesso», completa.

A mesma necessidade de análise do que correu mal é sugerida por Edinho, que deixa ainda algumas críticas aos que se querem aproveitar do futebol.

«Ouvi o que disse o Zé Castro [capitão da Académica] e é exatamente o mesmo que eu penso. Os clubes têm de perceber quem gosta disto por paixão e quem está por estar. Eu amo o futebol e custa-me ver que há tanta gente a aproveitar-se de algo que é a minha paixão. É preciso afastar quem está no futebol por estar porque são eles que estão a estragar este bonito desporto», lamenta.

«Esta é uma altura para reflexão. É preciso restruturar e devolver o fulgor para que possamos fazer regressar a Académica ao patamar de elite onde merece estar. Trata-se de um clube muito especial por tudo o que envolve: pelas pessoas, cidade e a massa associativa fantástica que move mundos para incentivar os jogadores», sublinha, ele que lamenta aquilo que lhe parece «a perda da mística do que é ser academista».

Pedro Roma, por seu turno, aponta uma medida que pode ajudar a recuperar a identidade que sempre distinguiu a Académica.

«Avizinha-se um processo eleitoral. Desejo que o projeto vencedor sustente a recuperação desportiva da instituição com uma aposta em jovens da formação, e de outros jovens valores que possam vir, mas com ADN Briosa», aponta.

«A aposta na formação não é só importante em termos desportivos. Será também fundamental na sustentabilidade financeira da instituição e no aprofundamento de uma identidade Académica que se quer diferenciada», acrescenta, deixando um apelo.

«A Académica e Coimbra merecem que se não desista.»

Não há palavras na saída de cena da Académica.

Porque não foi noutra vida. Foi no passado sábado que a Académica sentenciou o momento desportivo mais triste de uma história centenária. Uma despedida da equipa de Coimbra que deixa um desencanto em quem segue o futebol português.

Que não demore a escrever-se um novo capítulo de glória da Briosa.

[artigo atualizado]