Desporto e religião. Futebol e superstição. Não são raras as evidências de comunhão entre estes mundos. Paralelos e assimétricos, mas tantas e tantas vezes abraçados na hora da prece, na hora do sofrimento, na hora do triunfo ou da derrota.

Exemplos? O altar à Senhora do Caravaggio que Scolari popularizou na seleção; os beijos de Mourinho nas fotos dos filhos antes dos jogos; a toalha da sorte de Cañizares; a cassete dos The Cats que nunca abandonou Cruyff e a seleção da Holanda. Rituais de conforto, compreensíveis quando a pressão competitiva cria uma angústia quase insuportável.

Mais raro, quiçá único, é o caso de Afonso Martins que o Maisfutebol agora conta. Campeão pelo Sporting na época 1999/2000, internacional Sub21 e internacional olímpico, Afonso teve um último contacto com o futebol em maio de 2015 na função de treinador, quando subiu o popular Pasteleira à I Divisão Distrital da AF Porto.

Três meses depois, em agosto do mesmo ano, criou numa rede social um perfil onde utiliza o pseudónimo ‘Afonso de Xango’. É nesta página que frequentemente reflete e comunica com os seus fiéis sobre a religião que professa, o Candomblé. Afonso Martins é tratado por Pai – Pai de Santo, como a seguir perceberemos – e tornou-se numa figura muito respeitada no seio desta comunidade.

Afonso Martins é muito ativo na sua rede social dedicada ao Candomblé

Antes da publicação desta reportagem, o Maisfutebol contactou Afonso em três ocasiões, nos dias 18 e 19 de maio, convidando-o a falar sobre este lado menos conhecido do grande público.

O antigo futebolista de Sporting, Vitória de Guimarães e Moreirense recusou responder às nossas questões e não explicou se a sua vida profissional se cinge a este intenso lado espiritual ou se ainda continua aberto a experiências no futebol. Fica o registo.

O cheiro a incenso no balneário e as vestes extravagantes

Após passar grande parte da infância e adolescência em França, na cidade de Nancy, Afonso voltou a Portugal em 1995 para jogar no Sporting. Tinha 18 anos e a promessa de uma grande carreira no futebol profissional.

Nos três primeiros anos fez 87 jogos pelos leões e no ano de 1996 teve o privilégio de vestir a camisola da seleção de Portugal nos Jogos Olímpicos de Atlanta. Esteve em cinco dos seis jogos da equipa que acabou a prova no quarto lugar e marcou os dois golos da vitória contra a Tunísia.

A partir de 1998 a lua-de-mel em Alvalade morreu. Deixou de ser figura prioritária nos planos dos treinados e em quatro épocas fez apenas sete jogos pela equipa principal. O suficiente, ainda assim, para ser campeão nacional com Augusto Inácio em maio de 2000. Há 20 anos, precisamente.

Afonso Martins (ao centro, em baixo) foi campeão em 2000 pelo Sporting

Quando começou a forte ligação de Afonso Martins ao mundo espiritual? Ela esteve, na verdade, presente ao longo da sua vida. Vários antigos colegas confirmaram ao nosso jornal a «enorme fé e entrega» do esquerdino ao divino, mas preferem manter o anonimato, por se sentirem «desconfortáveis» ao falar de um antigo colega que foi sempre «muito reservado».

No ano do Pasteleira, Afonso levou para o balneário as suas convicções. «Mais do que tática, ele apelava ao espírito e à união. E a verdade é que resultou», sublinha Guilherme Ferreira, atual guarda-redes do Lavrense e antigo pupilo de Afonso Martins. A equipa acabou a época com 152 golos marcados em 38 jogos feitos.

«Não me surpreende saber essa ligação do Afonso. Uma vez chamou-me ao balneário e o cheiro a incenso era muito forte. Tinha velas e terços», continua o ex-futebolista. «Falávamos entre nós sobre estas questões, mas o grupo mostrou respeito. Lembro-me de o ver chegar a alguns jogos de calças largas de bombazine, rasgadas em baixo, e chapéu extravagante. Como se viesse de uma celebração religiosa.»

Afonso Martins, ou Pai Afonso de Xango, emite regularmente opiniões nas redes sociais. Ou meras dissertações. Como esta, escrita a 9 de setembro de 2019, que acaba por revelar um pouco do que é no mundo da sua religião, o Candomblé:

«Ser espiritualizado é acima, abaixo, dentro e fora, respeitar. O próximo, o todo, o tudo: respeitar. É ter ética, não discriminar, seja por cor, opção sexual ou qualquer outra opção de vida diferente da sua, na política, na religião ou no time do coração.

É ver pessoas sofrendo, com menos ou mais recursos, pobres fisicamente ou pobres de felicidade e saber que cada um está no momento que precisa estar para evoluir. Cada um tem seus aprendizados, perdas e ganhos.»

Afonso (em baixo, 2º à esquerda) na seleção de Sub21

Candomblé e Umbanda, religiões com milhares de fiéis em Portugal

No mundo do futebol, o silêncio continua a ser uma ferramenta vulgar na expiação de almas. A história bonita de Afonso Martins é mais uma prova disso. Poucos aceitam falar e sair do discurso redondo do «levantar a cabeça» e «pensar jogo a jogo».

Por contraponto, o Maisfutebol foi recebido com abertura, simpatia e total disponibilidade por duas das maiores figuras do Candomblé e da Umbanda no nosso país. Duas religiões com alguns pontos em comum na génese, mas diferentes em quase tudo o resto.

Afonso Martins professa o Candomblé, na figura de Pai de Santo da sua Casa, mas no passado teve contacto também com a Umbanda.

Para que percebamos melhor a mudança de foco do antigo futebolista do Sporting e como são agora os seus dias, deixamos as explicações de dois sacerdotes relevantes. Na primeira pessoa.

Babalorisa Jomar: Terreiro de Candomblé Ilé Asè Opo Alaketu Omín Ògún, em Almada
Dirigente e Pai de Santo, presidente da Federação Nacional do Culto Afro Brasileiro

Chegada do Candomblé ao Brasil:
«Não conheço o Pai Afonso [Martins], mas já ouvi falar do trabalho dele no Norte do país. Há algumas Casas que fazem a junção das duas religiões, mas aqui somos Candomblé. Só Candomblé. A nossa matriz é africana. Com a ida dos africanos para o Brasil, algumas comunidades sentiram a necessidade de criar o Candomblé. Houve uma aculturação, uma simbiose com os santos católicos.»

O Candomblé em Portugal:
«O Candomblé chega a Portugal no final dos anos 80. Nessa altura já existia a Umbanda. Foi a partir daí que a religião começa a implantar-se cá. Sou coordenador internacional da FENACAB, mas ainda não consigo dizer quantas pessoas professam a nossa religião. Grosso modo, mais de mil. Há gente que passa pelo Candomblé e não fica no Candomblé. Somos uma religião de poucos para muitos, uma religião de resistência. Exigimos muito, não é só o folclore que algumas pessoas vêem.»

Posicionamento:
«Não somos ortodoxos, não temos a mente fechada. Não discriminamos e não aceitamos ser discriminados. Algumas pessoas pensam que o Candomblé tem a varinha mágica e transforma pedras em ferro. Fico triste quando recebo pessoas que vêm a minha Casa e pensam que vêm assistir a um teatro.»

«No Candomblé só há duas formas de entrar: pela dor e pelo amor.»

Relação com os fiéis:
«Temos um calendário litúrgico anual e fazemos festas dos orixás do panteão africano. Fazemos essas cerimónias ao longo do ano. Temos ainda as cerimónias internas, sem público. Há também festas específicas de iniciação ao Candomblé, no salão.»

Cerimónia de Candomblé no templo de Almada

Bernardo Cruz: Templo de Umbanda Pai Oxalá, em Póvoa de Lanhoso
Padrinho, um dos sacerdotes que substitui o Pai de Santo do templo

Hierarquia:
«O sacerdote dirigente [máxima figura] sempre foi tratado por Pai de Santo. Porquê? É uma herança da raiz africana. As pessoas dentro do templo funcionam como uma família. Não é uma família de sangue, mas uma família religiosa. É a figura que dirige e orienta.»

«Todos nós temos os nossos empregos, ninguém vive dos rendimentos da religião.

Enquadramento histórico em Portugal:
«Nos finais dos anos 80 já existia na região de Sintra um templo de Umbanda legalizado. E há registos em livros, e num estudo de um antropólogo da Universidade do Ceará, que logo no pós-25 de abril surgiram alguns templos em Lisboa, mas que nunca foram registados oficialmente. Portanto, a Umbanda chegou a Portugal pelo menos nos anos 70. Nesta altura haverá já milhares de fiéis de Umbanda no nosso país. No nosso templo batizámos mais de 500 pessoas.»

Origem:
«É uma religião de origem brasileira. Nasceu no Brasil de uma fusão de várias crenças, nomeadamente dos cultos africanos – através dos escravos que foram levados pelos portugueses -, dos cultos dos índios brasileiros, do catolicismo europeu e do espiritismo europeu, este último chegado ao Brasil no final do século XIX. A Umbanda nasceu como mistura de todas estas influências e surgiu espontaneamente.»

Culto a um Deus único:
«Orum é o deus da religião e vem da raiz africana. Os Orixás são divindades na mitologia africana. A Umbanda interpreta esses orixás como sendo seres de energia da natureza. Cada orixá é uma qualidade de Deus: o amor, o conhecimento, a fé, o equilíbrio, a justiça.»

Grupo de trabalho:
«Há um grupo de pessoas que trabalham no templo e fornecem auxílio religioso e espiritual. E depois há a assistência, pessoas que vão normalmente em busca de ajuda. Temos cerca de 300 pessoas a visitar-nos semanalmente, é muita gente. E se o espaço assim o permitisse, seriam mais.»

Corrente mediúnica:
«A mediunidade é uma sensibilidade que faz parte do ser humano. Todos a temos, embora em graus diferentes. Há a mediunidade comum (intuição, sonhos, pressentimento) e a mediunidade desenvolvida, que permite a comunicação entre o plano material e espiritual.»

Diferenciação entre religiões:
«Somos muitas vezes confundidos com o Candomblé. Esse é um culto de raiz puramente africana. Há influências africanas comuns, mas há sobretudo diferenças. Na Umbanda, por exemplo, não é permitido qualquer tipo de sacrifício animal e nos templos não há qualquer cobrança de dinheiro.»

Ritual da Umbanda, no Templo do Pai Oxalá