«In vino veritas». No vinho está a verdade. 

Paraíso de vinhas e árvores de fruto, uma casa senhorial e seis bungalows abraçados a piscinas privadas. Termas de sossego, pináculo de paz, obra e graça do senhor Aitze Bouma.

O sorriso transbordante esconde um passado rico. No mundo do futebol, no extraordinário Ajax dos anos 70. Aitze Bouma - guardador e alma da Quinta do Cascalhal, dos seus vinhos e prazeres quase secretos - foi um dos membros do Ajax que nos deu Johan Cruyff e Johan Neskens, Johnny Rep e Ruud Krol, Wim Suurbier e Gerrie Muhren.

Uma opção discutível na carreira e duas hérnias inclementes destruíram-lhe o sonho de ir mais alto, mais longe. Aos 27 anos foi obrigado a desistir e aos 30 passou a estar de manhã à noite na sua tabacaria em Amesterdão.

Fartou-se. O negócio começou a correr mal e Aitze Bouma decidiu arriscar e aproveitar o ciclo seguinte da vida em Portugal. Escolheu um hectare e meio de terra em Arco de Baúlhe, concelho de Cabeceiras de Basto, para produzir vinho e receber amigos e turistas num empreendimento criado de raiz.

Harmonia perfeita com a geografia abençoada da região onde o Minho e o Douro quase se beijam. A conversa passa pelo Ajax e por Cruyff, claro, mas recupera ainda outra personagem marcante do futebol português. Tomislav Ivic [na foto de capa, dá instruções ao jovem Aitze Bouma, o primeiro à direita], o treinador campeão do mundo pelo FC Porto em 1987.  

Aitze Bouma numa foto de família com as reservas do Ajax (Arquivo pessoal)

Maisfutebol – Há quantos anos está em Portugal?

Aitze Bouma – Tenho casa em Arco de Baúlhe, uma freguesia de Cabeceiras de Basto, há 12 anos. Primeiro vinha só de férias com a família, mas há seis anos decidimos mudar-nos em definitivo para cá. Tínhamos uma tabacaria na Holanda, mas o negócio começou a correr mal. As pessoas deixaram de fumar, ainda bem (risos). Comprei uma propriedade com hectare e meio. Foi aí que me decidi aventurar no mundo do turismo e dos vinhos.

MF – A Quinta do Cascalhal.

AB - Temos seis bungalows, cada um com uma piscina privada logo à porta. Quem nos visita encontra luxo e descontração. Foi uma mudança enorme na minha vida. Na Holanda trabalhava seis dias por semana sempre no mesmo sítio, a vender cigarros, jornais, postais. Arriscámos, mudámos de vida e viemos para Portugal.

MF – Porquê Portugal?

AB - Conhecíamos bem o país, porque vínhamos cá já há muitos anos. Eu senti, pelo que via, que o Norte de Portugal estava a ter um ótimo desenvolvimento e que era o sítio certo para investir. O Porto é uma das mais belas cidades da Europa e está aqui ao lado, a uma hora. A escolha foi simples, até porque a simpatia das pessoas é especial.

MF – O negócio dos vinhos e do turismo corria bem antes desta pandemia paralisar tudo?

AB – Sinceramente, muito bem. Acredito que em julho ou em agosto as coisas vão começar a normalizar. Estamos muito felizes com a nossa opção de vida. A quinta está bem localizada, mesmo a meio do Norte de Portugal. Numa hora conseguimos estar em qualquer lado.

MF – Como nasceu o interesse pelo mundo dos vinhos?

AB – Já aqui em Portugal, há poucos anos. O meu vizinho tem uma área imensa de vinhas e já era um produtor experiente. Contactei-o para me associar ao negócio. Temos um vinho verde magnífico e já consegui exportá-lo para a Holanda. É um tipo de vinho único e é muito bebido no meu país. Aliás, acho que na Holanda o vinho é demasiado popular. As pessoas exageram (risos).

O simpático Aitze (à direita) recebe centenas de amigos na Quinta do Cascalhal

MF – A Holanda também produz vinhos?

AB - Há uma pequena zona vinícola, mas não bebo vinhos holandeses. A qualidade é boa, mas a uva é bastante diferente lá.

MF – Lembra-se da primeira visita feita a Portugal?

AB - A minha primeira visita a Portugal aconteceu há 25 ou 26 anos. Fomos para Albufeira, no Algarve. Depois fomos à Madeira, que também é um sítio magnífico. Já estivemos quatro vezes na terra do Cristiano Ronaldo (risos).  
 
MF – Falemos de futebol e do seu Ajax.

AB – A minha carreira começa um pouco antes. Comecei a jogar nas camadas jovens de um pequeno clube da II divisão holandesa, perto da minha terra. Chamava-se FC Wageningen, infelizmente já não existe [dissolvido em 1992]. Destaquei-me lá e aos 17 anos fui contratado pelo grande Ajax. Cheguei lá em 1973. Era júnior e treinava com os seniores. Foi aí que conheci o Johan Cruyff. Com muita pena minha, poucas semanas depois ele saiu para o Barcelona, ainda no verão.

MF – E quando passa o Aitze Bouma a integrar o plantel profissional?

AB - Fui promovido aos seniores em 1975, mas fiz ainda um ano na equipa de reservas. Entre 1976 e 1978 estive no plantel principal e joguei com outros grandes nomes da seleção holandesa: o guarda-redes Piet Schrijvers, o Wim Suurbier, o Ruud Krol, o Ruud Geels, o Tscheu La Ling e ainda dois dinamarqueses fabulosos, o Soren Lerby e o Frank Arnesen.

MF – Reencontrou o Johan Cruyff em algum momento?

AB – Sim, tive o privilégio de jogar contra ele na homenagem que lhe fizeram em Camp Nou, em 1978. Foi o jogo de despedida dele do Barcelona, antes de ir para os EUA. E foi emocionante, muito bonito.

O paraíso de Aitze Bouma em Portugal

MF – Como ficou o Ajax depois da saída do Cruyff para Barcelona?

AB - Mesmo depois de sair do Ajax, a influência dele no clube era enorme. Era um tipo com uma personalidade fascinante, mas alguns dos meus colegas tinham dificuldade em lidar com ela. O Johan era ‘O’ homem. Outros achavam que eram tão bons como ele e não lhes era fácil gerir tudo isso. Não aceitavam que estavam numa segunda linha e que tinham de aceitar isso. Para a equipa não era bom, claro.

MF – Percebe-se que era um tipo especial.

AB - Era um ser humano especial, sim. Chorei muito quando ele morreu. Aliás, só me lembro de chorar duas vezes por acontecimentos ligados ao futebol: na morte do Johan e no dia em que o Marco van Basten anunciou o fim da carreira.

MF – Conheceu de perto o Marco van Basten?

AB – Não, nunca o conheci. Mas a minha esposa, sim. Foi namorada dele antes de me conhecer (risos).

MF – Mundo pequeno. O Aitze esteve dois anos no plantel principal e foi campeão na época 76/77.

AB - Quando cheguei ao plantel principal em 1976, a qualidade do Ajax era inferior à dos anos anteriores. No clube exigia-se o chamado ‘Futebol Total’, mas o nosso treinador decidiu dar um passo atrás. Estou a falar do Tomislav Ivic, um homem famoso também aqui em Portugal. Foi meu treinador dois anos no Ajax.

MF – Quando diz «passo atrás», refere-se a quê em concreto?

AB - O senhor Ivic mudou o sistema de 4x3x3 para 4x4x2 e levou uma ideia menos bonita, mais defensiva. A verdade é que no primeiro ano dele fomos campeões nacionais e fizemos uma campanha boa na Taça dos Campeões Europeus. Fomos eliminados nos penáltis pela Juventus, já nos quartos-de-final. Joguei 30 minutos contra eles na partida em Amesterdão.

 

Aitze (à esquerda) na reunião em 2017 dos campeões de 1977

MF – Gostou de trabalhar com Tomislav Ivic, na altura ainda muito jovem?

AB - O senhor Ivic era um homem fantástico. Para os jovens e para os mais velhos. Tinha a capacidade de ligar as pessoas. Sabia como estimular o grupo e comunicar com os mais influentes. Muito bom treinador, um dos melhores que conheci.


MF – Quais as memórias mais fortes desses cinco anos no Ajax?

AB - Foram os melhores dias da minha vida. Conheci o mundo, estive nos melhores estádios e nos melhores hotéis. Infelizmente, aos 23 anos fartei-me de não ser titular e quis sair do clube. O senhor Ivic tentou convencer-me a ficar mais duas épocas, para evoluir, mas não tive paciência. Recebi o convite de um clube belga, o Boom FC, e joguei dois anos na primeira divisão desse país. Foi uma opção má, porque encontrei uma mentalidade amadora. Passei de profissional de elite a um futebolista que só treinava três vezes por semana. Destruí a minha carreira.

MF – Mas ainda voltou à liga holandesa.

AB - Em 1980, o Den Haag deu-me a oportunidade de voltar à Holanda. Comecei bem, fiz muitos jogos, mas apareceram-me duas hérnias e aos 27 anos fui obrigado a abandonar o futebol. Não conseguia correr, andava sempre cheio de dores. Desisti. Tirei depois a Licenciatura em Desporto e o curso de treinador, mas nunca quis exercer. Depois conheci a minha esposa, casei-me aos 30 anos e entrei no negócio da família dela. Três décadas a gerir uma tabacaria. Um bocadinho diferente do paraíso que tenho aqui em Portugal.