«Faltam apenas cumprir os habituais exames médicos». A expressão é frequentemente utilizada no período de transferências antes de um jogador consumar a mudança de clube, e o seu uso recorrente vulgarizou-a de certo modo.

É bastante comum haver transferências abortadas devido aos jogadores reprovarem nos habituais exames médicos. Aconteceu um número considerável de vezes em Portugal no passado – quem não se lembra, por exemplo, das contratações falhadas de Lucas Silva ou de Boateng? Nesta reabertura do mercado, os casos de futebolistas que não passaram nos testes médicos restringem-se a países estrangeiros.

Afinal, a que tipo de exames são submetidos os jogadores? Se as disposições correspondentes dos regulamentos da UEFA não variam de clube para clube, por que razão os jogadores passam nos exames no início da época e depois reprovam passado um mês (ou menos) à chegada ao novo clube? O Maisfutebol conversou com Domingos Gomes e Alexandre Marques, dois médicos especialistas em Medicina Desportiva para esclarecer as questões supracitadas. Venha daí, caro leitor.

«No exame normal regulamentado é obrigatório apenas fazer eletrocardiograma e ecocardiografia. O médico avalia o que é detetado e toma decisões a partir daí», começa por dizer, Domingos Gomes, médico do FC Porto durante várias décadas.

Por sua vez, Alexandre Marques, diretor clínico do Gil Vicente, realça a especificidade da avaliação médica.

«Mesmo dentro do futebol profissional, existem várias gamas de avaliação. Se for um atleta conhecido, por exemplo, que esteja em Portugal há vários anos, existe troca de informação entre os departamentos médicos. Faz-se eletrocardiograma, ecocardiograma, prova de esforço, consulta médica e uma série de análises que estão padronizadas. O exame médico-desportivo básico incluiu uma análise detalhada à história clínica familiar, à história pessoal, aos acidentes patológicos, entre outros», afirma, em conversa com o nosso jornal.

A introdução ao tema feita pelos dois clínicos segue à risca o documento relativo ao regulamento de Licenciamento de Clubes para as competições de clubes da UEFA, disponível no site da FPF. Segundo o mesmo, «todos os jogadores que pertençam à equipa principal de um clube têm de ter nos seus registos médicos pessoais, no mínimo, um eletrocardiograma e uma ecocardiografia».




Para além destes dois exames obrigatórios, existem alguns opcionais que são considerados «recomendações de boa prática». O carácter facultativo dos mesmos não os torna insignificantes, bem pelo contrário.

«Os meus atletas fazem todos prova de esforço. Se suspeitar de alguma lesão no joelho, no tornozelo ou na anca, peço para fazerem uma ressonância magnética. Assim conseguimos excluir grande parte das lesões que possam estar escondidas», sustenta Alexandre Marques.

«Sei que em clubes como Benfica, FC Porto ou Sporting, é padrão fazer ressonância magnética aos dois joelhos e aos dois tornozelos. Em clubes mais modestos têm haver uma grande inspeção clínica para haver uma melhor avaliação», acrescenta.

A importância dos exames opcionais é sublinhada por Domingos Gomes. «Quando iniciei no FC Porto, em 1977/78, juntava inúmeros dados para criar uma informação pessoal acerca do atleta. O exame médico desportivo não é tão fácil como parece. O médico tem de estar alerta e, mediante qualquer coisa fora do comum, deve pedir outros exames», reforça.

Os clubes, a Liga Portugal e a Federação Portuguesa de Futebol são os órgãos que definem quem está habilitado para realizar a bateria de exames médicos aos jogadores. No entanto, a complexidade da tarefa exige complementaridade.

«Não temos um cardiologista no clube, portanto, contratamos um para o efeito. O médico do clube, quem acompanha diariamente o plantel, é responsável por juntar todos os exames desde cardiologia e pedologia a dentária, e validar. É uma avaliação multidisciplinar», refere o clínico do Gil Vicente.

De Boateng a Zakarya: os motivos para os jogadores reprovarem nos exames médicos

Lucas Silva, Zakarya, Kevin-Prince Boateng e Alex são alguns dos futebolistas que viram transferências para Portugal falharem por questões médicas. Que razões estão por trás da reprovação nos testes médicos padronizados?

«No fundo, depende da exigência do departamento médico de cada clube. Por exemplo, passamos um atleta que vem do Brasil e detetámos uma alteração eletrofisiológica cardíaca, ou seja, o ritmo cardíaco não é normal. Tem de se estudar essa alteração de ritmo cardíaco para perceber se é benigno ou não. Pode ser patológico (não benigno) e, nesse caso, tem primeiro de ser tratado antes de jogar», atira Alexandre Marques, apontando um dilema.

«Existe também a questão ética. O atleta sabe que tem um problema, assume esse problema e quer jogar na mesma. Assume o seu próprio risco. Até que ponto o médico pode dizer que o jogador joga ou não? O importante é esclarecer se é patológico ou não. Podem existir alterações de ritmo cardíaco que não são patológicas e aqui já estamos a falar da suspeita de morte súbita.»





A explicação de Alexandre Marques é simples e fácil para quem quer perceber por que razão um jogador é considerado apto em vésperas do início do campeonato e, durante a janela de transferências, acaba por ser avaliado como inapto num outro clube.

A contratação de jogadores lesionados

Ocorre também, em casos contrários, os clubes contratarem jogadores lesionados. Este ano, apenas a título de exemplo, o Sporting recrutou Sturaro à Juventus. O italiano não estava clinicamente apto, conforme informaram os leões. De que forma isso é possível?

«Contratar um jogador que não está clinicamente apto é um risco. Imagine, como médico do departamento de futebol, pedem-me para avaliar o atleta. Concluo que o atleta tem um problema no joelho, provavelmente no corno posterior do menisco, e que consegue jogar por agora. No entanto, informo o clube que daqui a dois meses esse atleta terá de fazer uma cirurgia e, eventualmente, estar parado dois ou três meses. Todos juntos, clube, treinador, diretor clínico e presidente, assumimos o risco de ficar com ele», explica Alexandre Marques.




Quando os clubes não assumem o risco, os jogadores reprovam nos exames médicos. «O atleta pode reprovar porque tem uma patologia no tornozelo ou no joelho, ou uma lesão na coxa. Ou então porque últimos quatro anos, o atleta teve dez lesões musculares», esclarece.

Tanto Domingos Gomes como Alexandre Marques defendem que o exame médico-desportivo é «mais complicado do que parece» e que os clínicos «não têm costas para levar com as culpas todas». Por último, o médico ligado ao Gil Vicente explica qual a finalidade primordial do exame médico-desportivo.

«Acha-se que o exame médico-desportivo serve para encontrar o que é raríssimo. Não é. O exame médico-desportivo tem como objetivo encontrar as patologias mais comuns que podem ser despoletadas ou agravadas pelo exercício físico intenso. O intuito do exame médico-desportivo é detetar para prevenir e promover saúde. Não é para procurar as coisas mais raras. Para isso, é preciso haver uma suspeita», afirma.

Espero que tenha ficado esclarecido, caro leitor, pois este que vos escreve ficou.