O dia amanheceu em Bruxelas como qualquer outro. Poderia, de facto, ser apenas mais um na cidade que é vista como o coração da Europa, mas quem conseguiu desligar o cérebro para uma noite de sono, não terá tardado muito, ao raiar da manhã, a recuperar o filme da véspera. Não era um pesadelo.

O duplo atentado na capital belga, reivindicado pelo Estado Islâmico, é a crua realidade que a cidade terá de saber contornar. Esquecer será impossível, claro. Mas seguir em frente.

No dia seguinte à tragédia, o Maisfutebol auscultou dois portugueses que trabalham em Bruxelas, ambos ligados ao futebol. Tiago Conde é treinador no FC Forest, equipa amadora daquela região da cidade, onde joga Diogo Fernandes. Ambos traçam o perfil de uma metrópole que tenta reerguer-se.

«O ambiente está muito parado. Hoje não vi muito trânsito, mas senti que está toda a gente muito apreensiva. Parece que a qualquer momento estão à espera que volte a acontecer alguma coisa», diz o treinador.

Diogo Fernandes, ainda júnior, tem opinião semelhante. «Aos poucos as coisas vão ficando mais tranquilas mas ainda se nota muito o medo na cara das pessoas. O ambiente já não era muito bom há algum tempo mas nada como agora», descreve.

Mora a cerca de dez minutos da estação de metro de Maelbeek e, mesmo tendo saído à rua esta quarta-feira, admite que é «complicado» fazer uma vida normal nesta altura. As marcas do atentado estão por todo o lado.

Para Tiago Conde, o maior choque para os belgas não foi o atentado em si mas o timing que contrariou as indicações recentes. «A Bélgica esteve em estado de alerta permanente durante uma semana. A polícia estava permanentemente a dar informações positivas e a apelar à calma e o sentimento é que o pior tinha passado. Depois veio a captura e toda esta confusão», explica. Esperavam algo mais cedo, no fundo, e as mensagens positivas das fontes oficiais passaram uma falsa ideia de segurança. Que acabou com estrondo. Literalmente.

Caça ao homem nos campos do FC Forest

A equipa onde Tiago Conde treina e Diogo Fernandes joga acabou por ver-se envolvida no centro da perseguição que aconteceu na semana passada a Salah Adbeslam, responsável pelos atentados de Paris, em novembro último.

Tiago Conde relata: «Na terça-feira da semana passada a zona estava toda cercada. Víamos os helicópteros no ar, era um ambiente muito pesado, muito difícil. Na sexta apanharam o Adbeslam e havia sempre o receio de retaliação mas não pensei que fosse tão rápido.»

«Eles [terroristas] meteram-se lá na zona dos nossos campos. A polícia chegou até a enviar um cão com uma câmara para seguir-lhes o rasto, mas mataram-no. A polícia conseguiu as filmagens, contudo, não se aperceberam que tinha a câmara», acrescenta.

Tiago Conde (Foto: Facebook pessoal)

Diogo Fernandes conta a mesma história. Admite que foi «muito complicado o tempo em que andaram a vasculhar a zona dos campos». Dois suspeitos foram lá detidos, mas não Adbeslam, capturado em Molenbeek. «Era sempre helicópteros a sobrevoar aquela zona, era muito tenso», recorda Diogo.

A captura aconteceu na sexta-feira e no sábado o campo do FC Forest recebeu um jogo de futebol. «Molenbeek é longe e foi lá a situação mais complicada. O jogo decorreu normalmente, sem problemas nenhuns. O país não pode parar. Isso é o que eles querem», defende Tiago Conde.

«Estou agora a olhar para uma central hidroelétrica que há aqui na zona e na sexta-feira encontraram ficheiros com filmagens que eles fizeram do vigilante para perceber a rotina dele. Quando entrava, quando trocava o turno, essas coisas. Queriam rebentar isto tudo. Poderia ter sido muito pior», acrescenta o treinador.

O técnico luso relaciona os atentados com a captura de Adbeslam. «Isso deixou-os em pânico», comenta.

«Eles têm medo que ele dê informações importantes e então retaliam como podem. Diz-se por cá que havia uma carrinha com explosivos para chegar mas não quiseram esperar com receio de serem apanhados. Eles não têm medo de morrer, têm medo é de ser apanhados e torturados. Não vai ser fácil voltar à normalidade», sublinha.

O dia do atentado e a dúvida que fica: partir ou ficar?

Diogo Fernandes estava na escola quando soube do que estava a acontecer na cidade que é sua há quase cinco anos. «Vi a notícia no Facebook com uns colegas. Ligamos logo a rádio para acompanhar os desenvolvimentos», explica. Ficou pela escola até ao regresso a casa, bem mais tarde.

Já Tiago Conde relata que tinha uma reunião às 11 horas e saiu de casa, contrariando os avisos que eram feitos à população: «Demorei uma eternidade para fazer dois quilómetros. Senti em todos no clube uma apreensão muito grande. Mesmo outros portugueses com quem falei tinham o mesmo discurso: para continuar assim, vamos embora.»

A dúvida assaltou a mente de Diogo Fernandes e da família também. «Já passou pela cabeça irmos embora», confessa. «Pesam muitos fatores. Temos de pensar em muita coisa. Mesmo fatores económicos, bem-estar. Não é uma decisão fácil», continua.

Diogo Fernandes (Foto: Facebook pessoal)

Tiago não pensa deixar Bruxelas para já. Até porque não tem garantias que o cenário seja muito melhor noutros lados. Sente que, nesta altura, ninguém pode estar completamente tranquilo em solo europeu. O cenário global ameaça mudar e Tiago tenta ainda adaptar-se.

«Tenho uma viagem marcada para amanhã mas nem sei como vai ser. Já houve hoje três ou quatro falsos alarmes no aeroporto de Charleroi», lamenta.

«Treino um plantel que é 80 por cento muçulmano»

O problema na Bélgica tem muito de cultural, defende Tiago Conde. «É um país de quem se diz que sempre foi de toda a gente e não é de ninguém», descreve.

«Isto não é de agora. Estas pessoas que fazem isto nasceram cá, são filhos de antigos emigrantes, colocados em regiões específicas de Bruxelas e, de certa forma, marginalizados. Não é um problema que se resolva da noite para o dia», acrescenta.

Bruxelas tenta adaptar-se à nova realidade. Mas o medo está sempre presente. «Há dias quando se revelou uma longa lista de possíveis membros do Estado Islâmico diziam que só em Bruxelas estariam uns 20 mil. Já viu o que isto é? Se dois matam 100 ou 200 pessoas é fazer as contas…Vamos caminhar para quê? As pessoas começam a dizer que o futuro será isto ficar parecido com Israel: saímos de manhã e não sabemos se voltamos», diz o técnico.

Diogo Fernandes remata a ideia: «Antigamente vivia-se, apenas. Hoje vive-se com medo.»

O futebol serve de escape, para ambos. O treinador conta, de resto, como tem sido a reação dos mais novos a todo este ambiente na cidade: «As crianças não têm noção. No meu plantel 80 por cento são muçulmanos. Sentem-se marginalizados, é o que eu acho. Mas não sabem porquê. Não têm noção de tudo o que está a acontecer.»

E fora de Bruxelas, há segurança?

O Maisfutebol procurou, também, averiguar que efeitos teve o atentado na capital noutras zonas do território do país. Frederic Maciel, antigo avançado do FC Porto B, está, desde o início da época em Mouscron representando o emblema local.

A cidade dista cerca de 100 quilómetros da capital e tenta que o medo não se alastre até às suas fronteiras. Mas há sempre fatores a ter em conta.

«Sinceramente acho que mudou pouco. Vê-se mais polícia nas ruas, mais carros patrulha, também. O clube pediu-nos para evitarmos zonas de multidões. Aeroportos, centros comerciais… Mas, claro, não é uma regra, é um conselho porque temos de seguir com a vida», diz Frederic, que lembra que Mouscron é uma cidade bem mais pequena.

Frederic Maciel

Na rotina do clube, contudo, pouco mudou: «Os treinos mantiveram-se. Não temos jogo este fim de semana, portanto a agenda também é menos preenchida. Quando foram os atentados de Paris tivemos um jogo cancelado, por exemplo.»

O avançado garante que se sente seguro onde está e «para já» não pensa deixar o país. «Aconteceram dois atentados, eu sei, mas nunca se sabe onde eles podem atacar. Já foi em França, agora aqui. Quem garante que voltando a Portugal não acontece lá?», indaga.

«Ainda não chegou ao ponto de ter mesmo de ir embora. Sinto-me bem e tenho dois anos de contrato. Ainda não discuti o meu futuro com o meu empresário. A época não me correu muito bem, houve lesões e uma troca de treinador que não me beneficiou. Mas qualquer decisão que tome será sempre pelo lado desportivo e não por causa de insegurança», garante.

Sobre os atentados de Bruxelas, Frederic dá «graças a Deus» por não ter qualquer familiar ou conhecido envolvido, até porque «ainda há bem pouco tempo» os pais estiveram no aeroporto de Zaventem, quando o foram visitar.

«É sempre chocante, ainda que saiba que para quem perdeu alguém querido é muito mais doloroso. Para nós fica sempre o receio. Isso já não dá para alterar», remata.