Ao fim de 85 anos de vida, que fizeram do Estádio Mário Duarte um dos mais míticos do futebol português, a velhinha casa do Beira-Mar vem abaixo.

Após «ameaças» que se prolongavam há alguns anos, a demolição começou a fazer-se esta semana.

No local, inaugurado em 1935 e no qual se guardam as melhores memórias do clube aveirense, vai nascer uma nova ala do hospital da cidade, que serve toda a região.

Os sócios e adeptos do Beira-Mar ainda vão ter uma oportunidade para a última despedida da casa que foi do clube durante mais de 70 épocas, na manhã deste sábado, numa iniciativa que lhes vai permitir levar um pouco do Mário Duarte para casa. Uma cadeira, um tufo de relva, qualquer coisa que permita materializar as memórias daquele palco.

Mas onde é que pode caber a memória do local do último golo de Eusébio na I Liga? Em que prateleira se pode guardar o momento em que o Pantera Negra, com a camisola do Beira-Mar vestida, se despediu dos golos no principal escalão do futebol português, marcando ao Sporting?

Só mesmo a memória pode ser refúgio para tal recordação.

«Naquele campo sentíamo-nos imbatíveis»

Se falamos em golos no Mário Duarte, há um nome que é obrigatório trazer para estas linhas: de Fary Faye.

O antigo avançado senegalês, além de melhor marcador da história do Beira-Mar, é também aquele que mais golos marcou no Estádio Mário Duarte. Foram 33 as vezes que fez abanar as redes das balizas do «velhinho», como se refere carinhosamente ao estádio.

«A modernização faz com que tudo mude. Temos de perceber, mas tenho muita, muita pena quando isso atinge espaços emblemáticos», começa por dizer, em conversa com o Maisfutebol, enaltecendo a importância do palco.

«O Mário Duarte é um estádio mítico. Não só do Beira-Mar, mas também do futebol português. Toda a gente que acompanha o futebol fala com carinho do estádio. Fico muito triste com a demolição», assume.

Questionamos o atual diretor desportivo do Boavista pelas melhores memórias que guarda daquela que foi a sua casa durante cinco épocas.

A resposta é imediata. Talvez influenciado pelo facto de se cumprirem nesta sexta-feira 21 anos da conquista maior do clube aveirense.

«São tantas memórias, que é difícil escolher uma. Mas talvez o jogo em que vencemos o V. Setúbal e nos apurámos para a final da Taça de Portugal, que depois vencemos no Jamor», atira.

«Aquele campo guardava a mística do Beira-Mar. Lembro-me sempre do estádio cheio de público, muito próximo dos jogadores a apoiar-nos. Quando jogávamos lá, nós sentíamos que podíamos ganhar a qualquer adversário. Aquilo mexia com as nossas emoções e sentíamo-nos imbatíveis», assegura.

Foi assim que Fary se sentiu quando marcou o primeiro golo com a camisola do clube aurinegro: imbatível.

Era a sua estreia pelo Beira-Mar em casa, numa daquelas noites de gala. O adversário era o FC Porto, um rival que os aurinegros nunca tinham vencido.

«Graças ao meu golo, o primeiro que marquei no Mário Duarte, vencemos o FC Porto pela primeira vez. Ganhámos 2-1 e eu nunca mais me esqueci desse golo», confessa.

Porém, há um outro que lhe enche as medidas da memória.

«Posso dizer que marquei o único golo da história do Beira-Mar na Taça UEFA. Perdemos 2-1 em casa com o Vitesse, mas olha que aquele golo foi mesmo bonito. Há aquele golo muito conhecido do Bergkamp na Premier League. E o meu foi muito parecido com esse. Quem imitou quem? Eu marquei primeiro…», assegura numa gargalhada.

A nostalgia, contudo, é uma constante na voz de Fary. E acentua-se quando se despede de nós.

«Fico mesmo triste com o desaparecimento do estádio. Passei lá episódios que guardo no meu coração e que não se esquecem. Acho que morre com ele uma parte muito bonita da história do Beira-Mar. Há muita coisa que cai com esta demolição», lamenta.

O gesto que permitiu dar o «velhinho» às novas gerações

A morte do Estádio Mário Duarte já foi anunciada diversas vezes.

O facto de se ter construído um estádio novo para ser palco do Euro 2004 retirou o Beira-Mar do antigo campo e a crise financeira que o mundo atravessou poucos anos depois fez com que o Mário Duarte ficasse ao abandono.

Em Aveiro, não faltam vozes que associem o início da queda do Beira-Mar à saída do centro da cidade e por isso, ninguém estranhou que clube e cidade se «reconciliassem» quando o clube voltou ao «velhinho», em 2015.

Para isso, porém, muito contribuiu a ideia de seis pessoas, então ligadas à formação do clube por terem os filhos a jogar ali.

A ideia era simples. Quase uma manobra de charme, junto da Câmara Municipal de Aveiro, proprietária da infraestrutura.

A ideia, dizíamos, passava por tentar dar uma nova cara ao estádio, então muito degradado pelo estado de abandono. Umas pinturas, arranjos mínimos nos balneários e tentar fazer renascer um relvado, onde o que havia era um ervado em forma de matagal.

«O objetivo era tentar dar uma nova cara ao estádio para que a formação pudesse treinar ali, porque havia uma enorme dificuldade em encontrar campos para as equipas da formação treinarem», explica Hugo Coelho, um dos pais que passou no Estádio Mário Duarte os fins de semana de agosto de 2015.

A ele juntaram-se várias dezenas de adeptos. Um fim de semana atrás do outro. Cada um trazia o que podia, desde tintas, a pincéis, uma máquina de cortar relva. Tudo o que fosse útil.

E quando o estádio já estava apresentável, a direção do clube, então presidida por António Cruz, falou com os responsáveis pela iniciativa, para sugerir que também a equipa principal – então na II distrital – pudesse utilizar o estádio, de forma a tentar reaproximar o Beira-Mar da cidade.

A medida, aprovada pela autarquia local, surtiu efeito. O estádio voltou a encher aos domingos e as gerações mais novas puderam observar com os próprios olhos a tal mística que sempre ouviram associada ao estádio.

«Ninguém nos vai roubar as memórias»

Hugo Coelho, o tal responsável pela iniciativa que permitiu devolver o Beira-Mar ao centro da cidade de Aveiro, é hoje o presidente do clube.

E fala-nos com «um misto de emoções» sobre a demolição do estádio que começou a frequentar ainda criança pela mão do avô.

«As memórias, ninguém nos vai roubar. Vão ficar sempre connosco as recordações das maiores vitórias que vimos o Beira-Mar conseguir ali e dos grandes jogadores que passaram pelo clube», começa por dizer.

Ele, que diz, sem conseguir disfarçar uma breve gargalhada, que o jogo que viveu de forma mais intensa foi… um Beira-Mar-Mourisquense.

«Foi um jogo de muitos nervos, que vencemos graças a um golo nos descontos e que nos permitiu subir de divisão», recorda, Hugo Coelho, à data apenas mais um adepto do clube.

Isto permite perceber a amplitude de memórias que o Estádio Mário Duarte guarda. Cada um, reservará as que lhe dizem mais. Sejam elas dos tempos em que Eusébio foi jogador do Beira-Mar, de quando o clube participou na Taça UEFA, ou da forma como a cidade e os adeptos se uniram para reerguer o clube no momento mais difícil da história quase centenária.

E o futuro do local onde foram construídas tantas memórias também dá algum alento a quem tanto gosta do Mário Duarte, garante Hugo Coelho.

«Este espaço vai servir para a ampliação do Hospital de Aveiro, algo de que precisamos muito, há vários anos. E apesar de o terreno ser da câmara e não do clube, sentimos que temos esta responsabilidade social. Por isso, acredito que participar nesta mudança é algo que também deixa orgulhosos os beiramarenses», finaliza.

No final, há apenas uma mágoa em relação ao Estádio Mário Duarte: a forma como foi feita despedida do palco, numa partida interrompida ao intervalo devido à agressão de um adepto ao árbitro, e que viria a resultar na interdição do campo.

As memórias boas, porém, serão muito, muito mais.

Mesmo que seja impossível não sentir alguma dor ao percorrer as fotografias que o fotógrafo Ricardo Carvalhal fez para o Maisfutebol e que pode ver na galeria associada ao artigo.