* com Pedro Monteiro (TVI)

Ao criar 2001: Odisseia no Espaço, Stanley Kubrick mostrara o seu lado de Nostradamus. Colocara o homem em órbita especial, fizera da tecnologia um bem primordial, esculpira a inteligência artificial e a vida extraterrestre para torná-las unas e inseparáveis.

Kubrick, em 1968, colocara no ano de 2001 o estigma de ano maquinal. O triunfo dos autómatos e da exploração alienígena em detrimento do homem simples. A obra-prima do realizador continua admirável, sob todos os prismas, mas enferma de um mal insuportável: jamais menciona o feito colossal do Boavista Futebol Clube.

2001, 18 de maio. Há exatos 20 anos, o histórico emblema axadrezado derruba previsões, preconceitos e a ditadura de três ‘grandes’, para se tornar ele próprio maior em todas as dimensões.

2001: odisseia no Bessa, a viagem que o Maisfutebol inicia. Sem os efeitos especiais de Kubrick, mas com os testemunhos de sete dos magníficos de Jaime Pacheco, o maestro de toda a encenação à flor da relva.

PARTE II: onde andam os heróis do título de 2001?

PARTE III: olimpíadas no Parque, benção papal, 48 autocarros em Alverca

Martelinho nas vitórias sobre Sporting e FC Porto: fundamental

O Porto explode numa noite quente de maio. Jornada 33 da Liga, o Boavista recebe o Desportivo das Aves num Bessa a abarrotar de preto e branco ao xadreza. Não cabe nem mais uma alma num estádio já em obras e com uma das bancadas encerradas, a pensar no Euro2004.

As contas são básicas: o Boavista entra em campo com uma vantagem de quatro pontos sobre o FC Porto. Uma vitória garante o inédito campeonato para o Boavistão, um empate obriga a que tudo seja adiado e decidido na derradeira ronda. Onde? Estádio das Antas.

A invasão ao relvado do Bessa faz 20 anos

Os comandos de Jaime Pacheco não facilitam. Um autogolo de José Soares, ao 22º minuto, abre as hostilidades; a pistola de Elpídio Silva faz o 2-0 aos 49; o brasileiro Whelliton fecha as contas aos 64. Há festa no Bessa, a Avenida da Boavista pinta-se de negro e branco, a Rotunda da Boavista é um carrossel de corações aos saltos, no Cufra e no Clube 21 – restaurantes nas imediações do Bessa e muito visitados por boavisteiros – há gente aos berros em cima das mesas e a cerveja não para de escorrer.

Já estávamos a ameaçar o título há dois/três anos», diz Litos, capitão do melhor Boavista de sempre. «Fomos ganhando e acreditando. Diria que a vitória em casa contra o FC Porto [13 de janeiro, jornada 17, golo de Martelinho] fez-nos acabar com a vergonha e acreditar que não éramos piores do que ninguém.»

Martelinho é, de resto, um dos nomes grandes desse título. O Speedy Gonzalez do Bessa faz esse golo no dérbi da Invicta e repete a receita contra o Sporting, a 21 de abril, também em casa.

«É verdade, tive essa felicidade. Vencemos o FC Porto e o Sporting com golos meus. Contra o Sporting, lembro-me bem, tudo nasce num remate falhado do Sanchez. Eu aproveito o ressalto, ainda ouço o Sanchez a pedir o passe, mas encho o pé e faço um grande golo. Ele até rematava bem melhor do que eu, mas ali foi tudo instinto.»

«Lá vão os maluquinhos do Bessa, sempre a correr»

Martelinho, 46 anos, é um homem de memória fresca e palavra solta. «Até começámos mal o campeonato, perdemos em casa contra o Sp. Braga [18 de setembro de 2000, 4ª jornada], mas depois o comboio carrilou e ninguém nos conseguiu parar», diz o antigo extremo, um dos nomes grandes desse enorme Boavista.

Segredo? Tudo o que saía nos jornais e fosse para prejudicar-nos ia para a parede do balneário. Pendurávamos isso e dizíamos entre nós ‘tem calma, ainda vais engolir isso’. É por isso que não tenho dúvidas em dizer isto: ser campeão pelo Boavista Futebol Clube vale sete ou oito vezes o título num dos três grandes.»

Rui Bento, um dos líderes silenciosos desse balneário, reforça essa inconfidência de Martelinho. «Uma das coisas que mais mexia connosco era a conversa do ‘ah, eles não têm estaleca para aguentar’. O Boavista juntou as pessoas que tinham de estar juntas, formámos uma equipa sólida e muito solidária. Uma equipa com um coração incrível.»

A partir do Brasil, Duda, outra das setas venenosas de Jaime Pacheco, acrescenta o nome de Jaime Pacheco a este filme. Drama, suspense, até alguma ficção científica, como Kubrick tanto gostava.

«O Jaime era um treinador duro e os nossos treinos tinham a intensidade de um jogo. Fui obrigado a fazer musculação para suportar aquilo tudo. No início eu chegava a casa todo pisado, porque não aguentava tanta porrada», conta, em gargalhadas, o ex-avançado.

Jaime Pacheco, o homem do leme axadrezado

«O plano do mister Jaime era simples: tínhamos de chegar ao intervalo a ganhar. Esse meu Boavista tinha a capacidade de impor uma velocidade enorme, uma intensidade incrível, e os outros não aguentavam. À semana treinávamos com a relva alta e no dia do jogo a relva era cortada muito baixinha e molhada. Passávamos de um relvado mais lento para uma pista de corrida. Sentíamo-nos a voar.»

Alfredo Castro, elemento da equipa técnica de Jaime Pacheco, fala dessa filosofia de treino. «Era sempre tudo no máximo, tudo no máximo. As pessoas viam-nos a correr no Parque da Cidade e diziam ‘lá vão os maluquinhos do Bessa, sempre a correr’. Dava resultado, porque fisicamente ninguém era melhor do que todos. O resto era qualidade e organização».

«Acordei da operação e o Jaime levou-me a passar o dia com a família dele»

Voltas e voltas para regressar ao mesmo. O Boavista de 2000/2001 tem qualidade? Muita. Executantes de grande nível? Basta recordar Erwin Sanchez, Petit e Jorge Couto, três internacionais que passam, em diferentes momentos, por Benfica (os dois primeiros) e FC Porto.

É essa qualidade que faz a diferença? Não. É a alma, a exigência de Jaime Pacheco, a quase-violência na intensidade de treino, a brutalidade do esforço diário. O Boavistão junta tudo, mexe e constrói uma equipa demolidora.

William Quevedo é uma das faces mais visíveis dessa capacidade sobrenatural de suportar a dor. «Se eu abrandasse, o Pacheco falava comigo e nem me convocava. ‘Não treinaste bem, é porque não estás bem. No domingo vais descansar’. Sabe o que acontecia? Na semana a seguir treinava a dobrar.»

Quevedo faz questão de sublinhar também o humanismo do seu antigo técnico. Jaime exige tudo, mas devolve a dobrar. «Adorava-o e ele adorava-me a mim. Sabe quais foram as primeiras pessoas que vi ao acordar da minha operação [ao joelho]? O Jaime e o presidente João Loureiro. Eles ficaram comigo no hospital e esperaram até eu despertar da anestesia para ver se estava tudo bem.»

Segredo do sucesso? Não vale a pena complicar. Esse Boavista era uma família. Não preciso de dizer mais nada», reforça Quevedo. «E sabe o que me fez o Jaime depois a segunda operação? Pegou em mim e levou-me para Lordelo. Passei o dia com a família dele.»

Falta Jorge Silva, um dos melhores dessa equipa. Central, médio, voz respeitada de um dos meninos da formação axadrezada. «Havia a cultura do ‘ser Boavista’. Fomos liderados pelo espírito do Jaime Pacheco, criámos uma dinâmica de jogo imparável e tínhamos uma capacidade de treino única.»

Apetece entrar nesse balneário de campeões. Perceber como se davam, sentir a competitividade, ler a estratégia de Pacheco. Jorge Silva abre a porta e revela mais um pequeno tesouro.

«A dada altura pedimos à direção para tentar marcar os nossos jogos sempre antes dos jogos dos rivais. Nós sentíamos que ninguém nos parava e que as nossas vitórias iam pressionar os outros. Resultou.»

Litos, Martelinho, Duda, Quevedo, Jorge Silva, Rui Bento e o eterno Alfredo Castro. Sete dos magníficos do Boavista campeão, o Boavista que está de parabéns e que pensa, certamente, em dois elementos desse grupo que já não estão entre nós.

Vítor Nóvoa, treinador adjunto, faleceu em 2011. José Paes de Amaral, diretor desportivo, partiu em 2019. Esta celebração dos 20 anos do Boavistão também é deles.