«Aqui ninguém inventou a roda e não fazemos isto para aparecer.» A frase é de Dado Oliveira, filósofo, fundador e presidente da Academia Desportiva (AD) Manthiqueira, uma equipa da cidade de Guaratinguetá, no Brasil, que disputa a II Divisão do Estado de São Paulo.
 
Poderia ser apenas mais uma das centenas de equipas dos estaduais brasileiros, mas não. Esta é especial. Ali o futebol é uma arte. E não é conversa fiada. Poucas equipas no mundo farão tanto para preservar essa ideia como o Manthiqueira.
 
O Maisfutebol descobriu a história desta equipa, fundada em 2005 por Dado Oliveira, e ficou curioso. Quis saber mais. Conversou com o criador do conceito que o explicou de forma detalhada.
 
«Sou filósofo, formado na Universidade de Lorena. No curso, a minha monografia foi relacionada com Kant. E ele falava muito na ética. Fazer o certo independentemente de estarmos a ser observados ou não. Criar uma linha de conduta, como, aliás, Aristóteles também escreveu. O que nós queremos é isso: fazer futebol da forma mais ética possível», começa por dizer Dado Oliveira.
 
Ora, conscientes de que um mundo perfeito não existe, socorrem-se do que é possível fazer: o fair-play. Assim, foi criada uma cartilha, com sete pontos, que serve de farol para as ideias do clube. Todos os jogadores têm de a respeitar para jogar no Manthiqueira.

 
A Cartilha de Conduta da AD Mathiqueira

Alguns dos pontos são, de resto, nada habituais. Veja-se o primeiro: «Malandragem proibida: todos os atletas estão proibidos de simular faltas, trapacear ou ludibriar a arbitragem. Quando ocorrer falta (mão na bola) o atleta deve avisar o árbitro da intencionalidade do facto.»
 
Dado Oliveira explica: «Não conheço nenhum outro clube que proíbe o atleta de cavar falta. Não deve querer ludibriar o árbitro. O ideal era que todo o mundo fizesse isso, mas já se sabe que não dá. Fazemos a nossa parte.»
 
Mas há mais. Até o sistema tático está definido na cartilha. O Manthiqueira joga sempre em 4-3-3.
 
«Porquê? Por causa da Holanda. Em 1970 eu tinha dez anos e vi o Brasil ser campeão com aquela equipa fantástica com Pelé, Tostão, Rivelino… Em 1974 tinha a certeza que o Brasil seria outra vez campeão. Mas apareceu a Holanda e ganhou 2-0. Foi dos dias mais tristes da minha vida»
, conta.
 
A seleção de Rinus Michel acabou por ser a inspiração para o Manthiqueira. «A partir daí fui querendo saber mais sobre eles. Por que jogam de laranja, por que jogam daquela forma. Percebi, graças à filosofia, que desenvolvi o chamado síndrome-Estocolmo: tendência para apaixonar-se por aquilo que nos faz sofrer. Coloquei a equipa a jogar de laranja e no símbolo diz Rinus», frisa.
 
«Treinador a dar instruções? O artista não gosta de ser perturbado»
 
Apesar de a tática ser o 4-3-3, esta não é estanque, frisa Dado Oliveira. O jogador tem liberdade para decidir os movimentos em campo. Uma liberdade que não é libertinagem. «Têm de ser inteligentes», frisa Dado Oliveira. E acrescenta: «É como na Holanda, lá está. Rinus Michel descobriu que oito dos 11 jogadores da Holanda de 74 tinham QI acima da média.»
 
A equipa é treinada por uma mulher. Nilmara Alves. Também para ela há regras definidas. «Durante a semana pode cobrar, falar, discutir. No jogo deve ficar à beira do campo e apenas dar uma indicação ou outra, nada mais», explica o presidente.
 
«Não quero um treinador a cantar jogadas na linha lateral. O futebol é uma arte, como a pintura, a literatura. O artista não gosta de ser perturbado. O jogador é que tem de decidir o que fazer e não o treinador. Damos total liberdade de decisão aos jogadores», insiste.
 
Dado Oliveira diz que Nilmara Alves encaixou bem na equipa porque é, também ela, uma estudiosa. E não há qualquer preconceito sexista. Homem ou mulher, o presidente só não quer um treinador demasiado interventivo. «Alguns treinadores são autênticos animadores de auditório. Não gosto disso», comenta.

 
Dado Oliveira (à dir. na imagem) e Nilmara Alves (à esq. na imagem)


«Adeptos chamam-me doido»
 
No meio disto tudo, fica a questão: como reagem os jogadores? E os adeptos, já agora…
 
«Quando contratamos os jogadores fazemos sempre um período de experiência de 15 dias. Eles têm de conhecer a nossa cartilha e ver se conseguem adaptar-se. Não adianta ser bom de bola, ter talento, se não encaixar», explica Dado Oliveira.
 
Com os adeptos é mais difícil. «Chamam-me doido, maluco», assume.
 
«Gasto muito dinheiro na equipa e o retorno é pouco. Mas não consigo mudar. No futebol não deve haver malandragem e eu não abro mão disso. Temos, também, muitos adeptos que aceitam e elogiam. Dizem que o futebol era melhor se houvesse mais equipas assim. É a minoria. Estou a remar contra a maré, claramente. É um trabalho lento, tem de haver paciência e tempo para se verem resultados», assume.

 
Dado Oliveira à conversa com os jogadores no balneário

E acrescenta a ideia que suporta todo o projeto: «O Mathiqueira não é uma equipa, é uma proposta de jogo com uma filosofia clara: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.»
 
«Guarda-redes é o camisola 11 e o capitão o número 1»
 
As peculiaridades da AD Mathiqueira não se ficam por aqui. Até a numeração dos jogadores é definida por regras claras. O capitão, por exemplo, é sempre o número 1. E não é o guarda-redes, desenganem-se.
 
«O capitão usa o número 1 porque é a pessoa mais importante em campo. Representa a treinadora e o presidente em campo. Quando vai falar com o árbitro é como se fosse todo o clube»
, explica.
 
Então e o guarda-redes? Para ele fica a número 11. Com uma justificação bem menos elegante: «É como nas peladas de rua: é o último a ser escolhido. É aquele que ninguém quer. Como se costuma dizer: é tão ruim que joga com a mão.»

 
O guarda-redes com a camisola 11

«Se ficam magoados? Não. Quando chegam informo que têm de jogar com a 11. Se quiserem a 1 têm de mostrar o que sabem fazer com os pés e podem ser o capitão. O guarda-redes é o último, sempre»
, reitera.
 
Em dez anos de história, Dado Oliveira acredita que nunca ganhou com um erro do árbitro. Mas até já foi prejudicado.
 
«No ano passado a arbitragem errou num fora-de-jogo que nos daria acesso à zona de subida. Marcámos o golo e foi anulado mas vimos na televisão, depois, que foi uma decisão errada», explica.
 
A equipa protestou? «Não, claro», responde o presidente. « Eu próprio tinha ficado convencido que estava fora-de-jogo mesmo. Foi um lance rápido e não houve má-fé. A olho nu era muito difícil. No futebol todos erram e os árbitros também têm esse direito», completa.
 
Definitivamente, um clube especial. 

Um golo da AD Manthiqueira: