Fernando Lage não assistiu ao vivo a nenhum dos jogos do Benfica desde que o filho Bruno assumiu, a 3 de janeiro deste ano, o comando técnico da equipa que se sagrou campeã nacional no sábado. Tem direito a lugar num camarote, mas passou sempre a oportunidade.

O Maisfutebol encontra-o ao início da tarde de segunda-feira no café onde costuma parar diariamente. À hora da bica, o espaço está composto e o senhor Lage chega acompanhado da mulher e do outro filho, Luís Nascimento, treinador dos juniores do Benfica.

Dois dias após a Reconquista, ainda recebe mensagens de parabéns e os vizinhos notam que apresenta um semblante diferente daquele que transportou durante semanas, ele que, para não se enervar, bloqueou já desde há algum tempo programas televisivos de desporto onde se fala pouco de futebol.

«Andei aí um bocadinho mais tenso porque era o jogo do título. Santa Clara? Não! Para mim, o jogo do título foi com o Rio Ave. Fechei-me no quarto às escuras, em silêncio, e só ia à sala quando a minha mulher dizia que o Benfica tinha marcado. Só vi os últimos cinco minutos desse jogo», conta.

Fernando Lage estabeleceu com o filho um pacto que quer respeitar para não ver a privacidade invadida. Não se alonga em grandes conversas ou palavras elogiosas sobre os êxitos dele e tem bem definidos os limites do discurso nos raros contactos que vai mantendo com os jornalistas. Se Bruno teve de aprender a viver nos últimos meses com a curiosidade da imprensa, a família não é exceção. Há uns tempos, Celeste, a mãe, fintou uma equipa de reportagem que a interpelou ali na Fonte do Lavra sem saber de quem se tratava. Não tinha informação de onde morava ou tinha morado Bruno Lage.

O obreiro do 37 já não vive naquele bairro de Setúbal, paredes-meias com a Bela Vista, mas aparece regularmente nas folgas para visitar os pais.

Ainda antes de darmos de caras com a família Lage, Mário Oliveira é-nos indicado como um bom cicerone para falar do treinador do Benfica. Com a devida autorização do próprio, Mário passa a ‘Azias’ daqui para a frente. «Pode escrever à vontade. É assim que ele me trata: ‘O meu amigo Azias’.»

Como a maioria das pessoas que conversam com o Maisfutebol no bairro onde Bruno Lage viveu até emigrar para os Emirados Árabes Unidos em 2012, ‘Azias’ assume-se como adepto do Vitória. Recusa assumir ter ficado feliz pelo título do Benfica. «Fiquei contente pelo Bruno ser campeão.» 

Uma perspetiva diferente.

Ao lado de Mário Oliveira, outro Mário – Bruno Lage trata-o por ‘Marreta’ – escuta o diálogo e junta-se a ele com dedo cirúrgico após uma entrada negligente. Solta uma inconfidência, mas pede por tudo que não a publiquemos. «Atenção, atenção!», adverte ‘Azias’, com a voz ainda mais grave e tom impositivo, a tomar novamente as rédeas da conversa.

Adiante. 

Mário Domingos (à esquerda) e Mário Oliveira. «Ele já era grande e punha-se a jogar à bola aqui onde estão os carros estacionados com os putos de oito, nove e dez anos. Púnhamos pedras a fazer de balizas e jogávamos. Isto já com uns 30 anos. Os putos iam saindo e nós é que acabávamos o jogo», conta o segundo.

O Bruno do bairro não é extrovertido, mas é diferente do homem low profile que se viu nas aparições públicas em jogos, conferências de imprensa e até durante os festejos na Luz, Marquês e Paços do Concelho, em Lisboa.

Mário Domingos, o ‘Marreta’, lembra-se do que ele lhe fazia durante os tempos em que foi dono do restaurante Vitória, hoje um estabelecimento com outro nome. «Fazia-me grandes judiarias. Ele, o irmão e o resto da malta que se juntava aqui davam-me cabo da cabeça. Eu às vezes saía do restaurante para ir levar o lixo e eles trancavam-se lá dentro. ‘Agora já não entras, é bar aberto.’ Ele devia ter uns 16 anos’. A malta nova iniciava-se ali», constata.

Até pouco antes de Lage sair de Portugal, o «grupo da malta» juntava-se para jantaradas duas ou três vezes por ano. «Tínhamos uma sociedade e jogávamos no Totobola e no Totoloto. Depois, o nosso ‘contabilista’ guardava o dinheiro até termos o suficiente para marcar um jantar. Começava à noite e acabava ao amanhecer. Vamos agora tentar retomar estes convívios», conta, nostálgico, Mário Oliveira, que se vai deixando ficar.

Consoante a seriedade do tema, muda o tom de voz. Por vezes quase sussurra, quase como se não quisesse que a conversa fosse ouvida na mesa ao lado.

Recorda uma conversa que teve com o agora treinador do Benfica quando este o informou da vontade em regressar ao país para ficar mais perto do filho, fala de Carlos Carvalhal - de quem já era admirador muitos antes de trabalhar com ele - de Jaime Graça, mentor de Lage e «amicíssimo» do pai de ‘Azias’, e recua aos tempos tempos em que Bruno conseguiu que os seus dois filhos, que jogavam no Vitória, fossem desviados para o 1.º Maio, escola de futebol criada por Quinito e que nos primeiros anos teve o nome do próprio. «Não descansou enquanto não os sacou. Ele era uma espécie de irmão mais velho dos meus filhos.»

Arquivo pessoal: Cláudio Saúde

Na rua acima, num banco em frente a um parque infantil, um grupo de reformados desperta a atenção do nosso jornal por estar a falar naquele preciso momento do assunto que nos traz ali.

Freitas, de pronúncia local acentuada, é o que apresenta a postura mais desportiva. «Eu cheguei a jogar à bola com o Quinito e jogava mais do que ele. Só que era malandro e nunca cheguei longe», diz o vitoriano que transporta na cabeça um boné gasto do Benfica. «Anda com ele há meses», dizem.

«Foi o pai dele quem mo deu, mas de certeza que veio do Bruno. Tem graça que só me deu a mim o boné e deu outro a mais uma pessoa. Alguma coisa há-de querer dizer.» Freitas fala e os companheiros vão desertando, uns a rir e outros com ar de enfado, pela aparente falta de precisão com que constrói a narrativa.

Numa garagem nas traseiras da rua onde moram os pais do treinador do Benfica encontramos António Moreira, 71 anos. Natural de Pedrógão Grande, está em Setúbal há quase cinco décadas. Como prova de que conhece bem a família, apresenta-nos o bisavô de Bruno Lage. «Era vendedor de marisco. Punha ali os tabuleiros no chão para arrefecerem e chegava a ir fornecer a Lisboa. O bisavô dele!», vinca.

António Moreira vive no bairro há 56 anos e conhece a família de Bruno Lage desde essa altura

Antigo teclista em grupos musicais – ainda vai fazendo umas presenças – o senhor Moreira é bate-chapas de profissão. «Já arranjei aqui o carro do Bruno e o do irmão Luís quando eles tiveram problemas de toques para resolver. E olhe! Quando ele quis despachar o carro que tinha, um Renault Clio com uns 200 mil quilómetros que estava aqui parado, fui eu que o vendi: 600 euros!», dispara.

«Oh Moreira, tens cola?»

A conversa é interrompida por José Costa, 79 anos e ainda no ativo como eletricista. Uns minutos depois, seguimos com ele até ao local de trabalho, numa outra garagem da rua, e percebemos que a cola servirá para fixar numa das paredes da oficina um poster com o onze inicial do Benfica perfilado antes do jogo decisivo com o Santa Clara.

Se António Moreira disse que se viu «obrigado» a gostar do Benfica por causa de Bruno Lage, este é orgulhosamente encarnado. Desfia memórias dos tempos da ‘outra senhora’: sobre o grande Benfica, que começou a acompanhar quando «emigrou» com o pai para Lisboa, e sobre a miséria existente no Portugal «amordaçado e miserável» de antigamente.

Depois das recordações do passado, José lá fala de Bruno Lage, que diz ter provado ser um exímio condutor de homens, e um estratega disciplinado, assunto que ele também domina mas numa outra vertente.

«Sabe, o futebol pode ser um desporto de improviso, mas tem de haver disciplina e uma orientação. Eu andei na guerra em Angola e na altura tínhamos uma disciplina de combate. Primeiro, tínhamos de conhecer a arma que o inimigo tinha. Isso era ‘meia-linha’: saber o alcance que tinha e não tinha. E, depois, saber quando tínhamos ou não de atacar. E o futebol é a mesma coisa. Se não, é uma anarquia onde ninguém se entende», nota com propriedade.

José Costa com o poster que colou dois dias depois do 37.º campeonato do Benfica. «Senti medo por ele quando substituiu Rui Vitória», assume

O futebol desde sempre

Fernando Lage foi jogador em vários clubes da região de Setúbal entre as décadas de 70 e 80. Extremo-direito velocíssimo e assistente dos pontas-de-lança, apresentam os vizinhos. Quase todos concordam que ele - que posteriormente treinou Grandolense, Comércio e Indústria e Cova da Piedade - era mais jogador do que o filho Bruno, que cedo mostrou ter aptidão superior para o treino e para a pedagogia.

Cláudio Saúde, vice-presidente de Fernando Lage no núcleo de treinadores do distrito e amigo de Bruno, corrobora esta versão, ou não tivesse jogado com ele no Praiense e trabalhado depois, já enquanto treinadores, nas Escolinhas do Quinito/1.º Maio, na viragem do século.

«Lembro-me que acompanhávamos com muito interesse a metodologia do Ajax dos anos 90. Trocávamos muita documentação sobre futebol, coisas que encontrávamos em livros e uma ou outra informação que já se via na internet. Ele tinha pouco mais de 20 anos, mas já era muito rigoroso, disciplinador e sério», recorda.

Bruno Lage (à direita) e Cláudio Saúde (2.º de pé à esquerda) ao lado de Fernando Lage, na altura coordenador das Escolinhas do Quinito/1.º Maio. O pai passeava no campo antes dos jogos e o filho herdou o hábito (arquivo pessoal: Cláudio Saúde)

«Então! Já não falas à malta?»

De volta à Fonte do Lavra, a vizinhança não nota diferenças entre o Bruno de antes e o de há cinco meses a esta parte. «Quando ele chega ao café, faz questão de cumprimentar as pessoas. No início havia muita gente a querer tirar fotografias e ele nunca teve problemas com isso», diz o bate chapas António Moreira.

Freitas, o tal que transporta orgulhosamente o boné, também não tem razões de queixa, mas recorda um dia em que, uns tempos depois de Lage ter assumido o comando da equipa principal do Benfica, levou um raspanete. «Eles iam na conversa aqui na rua, passaram sem dizer nada eu meti-me com ele. ‘Então! Já não falas à malta?’ O pai dele depois veio ter comigo e deu-me na cabeça por isso, mas eu estava na brincadeira», desdramatiza.

Lage e Mário Domingos 'Marreta'. Fotografia foi tirada no dia seguinte à vitória do Benfica sobre o Rio Ave

Na segunda-feira anterior à finalíssima com o Santa Clara, Bruno seguiu o ritual de visitar o bairro nas folgas. Esteve por ali umas horas e depois voltou para cima, conta o ‘Azias’. «Só conseguiu rir uma vez comigo e outra com ele», diz, apontando para o amigo ‘Marreta’. «Ele estava aqui sentado, eu cheguei e dei-lhe os parabéns. Ele vira-se e diz-me: ‘F***-se, parabéns não!’ ‘Então, não fizeste anos? Pensavas que eu ia dar-te os parabéns pelo quê? Vamos lá com calma’.»

A grande diferença está em quem vem de fora. Jornalistas e outros desconhecidos, nota o eletricista José Costa. «No domingo assisti a uma cena engraçada. Fui ali tomar café e apareceram dois gajos praticamente de ressaca da festa, quase bêbados, de automóvel e tal… Entraram no café e perguntaram onde é que morava o Bruno Lage. Eu meti-me e disse que já não morava ali, que morava em Lisboa. Só lhe queriam dar os parabéns pelo título, foi uma pancada que lhes deu. Percebi que eram de fora, porque nem sabiam onde é que se come choco frito.»

(artigo originalmente criado às 23h56 de 23/05/2019)