Interceção da rua Árpad com as ruas Virag e Petröfi: o que hoje é um parque de estacionamento, no norte de Budapeste, era em 1944 o local do salão de cabeleireiro de Pál Moldován.
No sótão de um apartamento contíguo ao salão, Pál, de família cristã, escondeu durante os meses de ocupação nazi na Hungria o seu cunhado, um judeu de nome Béla Guttmann.
Ao chegarmos, vemos um sítio demasiado comum para ser cenário de tamanha aventura.
Pouco mais de década e meia antes de levantar duas Taças dos Campeões Europeus pelo Benfica, o técnico húngaro escapou às execuções e deportações no final da II Guerra Mundial, refugiando-se na pequena divisão, que passou sempre despercebida às frequentes revistas da Gestapo.
Durante muitos anos, pensou-se que Guttmann tinha conseguido exílio na Suíça. Porém, o escritor inglês David Bolchover desvendou o mistério no seu recente livro «Béla Guttmann – De Sobrevivente do Holocausto a Glória do Benfica».
«A mais importante descoberta na minha pesquisa foi o que aconteceu a Guttmann durante o Holocausto. Na verdade, ele não esteve a salvo, mas sim escondido em Újpest. Depois, entregou-se e foi para um campo de trabalhos forçados, perto de Budapeste, correndo o risco de ser deportado para Auschwitz. No entanto, viria a escapar, saltando da janela do primeiro andar, com mais cinco pessoas. Entre elas Erno Erbstein, outro grande treinador de futebol», conta Bolchover ao Maisfutebol, sublinhando o trauma pessoal de quem teve «o seu pai e irmã assassinados pelos nazis, tal como boa parte da sua família e amigos».
«Arriscou a vida por amor ao futebol»
A vida daquele a quem mais tarde alcunhariam como «O Mago» dava um filme: nasceu em Budapeste, foi estrela do MTK, jogou quatro vezes pela seleção húngara, e depois foi para a Áustria representar o Hakoah, equipa judaica de Viena. Numa digressão, acabou por emigrar para os Estados Unidos, foi dono de um bar em plena época da «Lei Seca», enquanto jogou futebol numa mão cheia de clubes de Nova Iorque. Perdeu tudo na sexta-feira negra no crash da bolsa de Wall Street, em 1929. Até que, apesar de ter uma licença de permanência vitalícia nos Estados Unidos, decidiu voltar para a Europa, no início da II Grande Guerra, numa altura em que a população judaica fazia em massa o percurso inverso para escapar à crescente onda de hostilidade no Velho Continente.
Em 1939, no comando técnico do Újpest, venceu o campeonato húngaro e a Taça Mitropa (uma das competições percursoras das provas europeias).
No entanto, o que o levou a regressar, contrariando toda a lógica?
«Podemos dizer que ele arriscou a vida por amor ao futebol», afirma David, detalhando:
«Quando os nazis entraram na Áustria, a 12 de março de 1938, Guttmann foi sagaz e já tinha deixado Viena e voltado à América [onde jogara nos anos 20], partindo de navio. Passou alguns meses em Nova Iorque no pré-II Guerra Mundial a tentar formar um novo clube de jogadores europeus, mas não conseguiu investimento. O futebol lá, que florescera nos anos 20, acabou por definhar. E ele resolveu voltar à Hungria, ao receber um convite para treinar o Újpest, colocando-se em grande perigo.»
«Chegou ao Benfica e disse: "Quero 200 contos se for campeão europeu"»
António Simões, antiga glória do Benfica, designa o seu antigo treinador como «o astuto».
«Ele nunca falou connosco sobre o Holocausto. Só mais tarde viemos a descobrir essa história», começa por contar ao Maisfutebol aquele que é ainda hoje o mais jovem jogador a sagrar-se campeão europeu, aos 18 anos.
«Guttmann era um homem extremamente exigente, de poucas palavras, mas era muito curiosa a forma de ele abordar o que deve ser o futuro do jogador de futebol. Ele dizia-nos para pôr o dinheiro no banco, para salvaguardar o futuro dos nossos filhos e para ser regrado: deitar cedo, não andar na borga, respeitar a mulher, ter família.»
Quem fala sobre Guttmann destaca invariavelmente a sua sagacidade.
«Ele percebeu sempre o momento de se ir embora, na vida e no futebol. Isso é tão verdade que ele até escolheu o momento de sair do FC Porto e ir para o Benfica.» Guttmann foi campeão nacional pelos portistas antes de ir parar ao rival.
Quando chegou à Luz, fez uma exigência curiosa, um método recorrente noutros clubes pelos quais passara na sua carreira.
«Ele disse: “Quero 200 contos se formos campeões europeus.” E o Gastão Silva, que era o responsável do futebol, respondeu: “Claro, não há problema.” Porque pensou que nunca iria ganhar. Ora, acabou por ganhar duas vezes e no Benfica tiveram de andar a pedir dinheiro ao banco…», recorda Simões, que sobre a propalada maldição feita por Guttmann aquando da sua saída, de que o Benfica não voltaria a ser campeão europeu nem em 100 anos, esclarece: «Ele nunca disse exatamente isso, mas saiu desapontado do Benfica.»
«Boa parte da Europa queria-o morto e, passado 16 anos, ganhou a principal competição»
Voltando a Budapeste: perto de metade da população judaica em 1944, que era de 250 mil pessoas, foi assassinada durante o Holocausto. Num espaço temporal muito curto, houve um genocídio em massa perpetrado pelos nazis conjuntamente com os húngaros do Partido da Cruz Flechada. Boa parte da população judaica ficou sitiada em guetos, o maior de todos no centro da cidade, junto àquela que é ainda hoje a maior sinagoga da Europa, ou encaminhada para campos de trabalhos forçados e posteriormente deportada para o extermínio em Auschwitz e noutros campos de concentração.
Houve quem fosse fuzilado, junto ao Danúbio, numa memória que ficou imortalizada pelas pequenas estátuas de sapatos pregados nas margens do rio.
Nesse período, houve dois diplomatas portugueses que com os seus esforços salvaram mais de mil judeus da morte certa: Carlos Branquinho e Sampaio Garrido têm por isso o seu nome gravado numa placa próxima do Danúbio, no local da antiga embaixada de Portugal.
Guttmann escaparia com vida, escondido uns quilómetros acima num sótão de Újpest. Haveria de tornar-se num treinador de sucesso passando, além de Portugal, por Itália, Suíça, Roménia, Chipre, Grécia, Argentina, Brasil ou Uruguai. Na Hungria, chegou a treinar o famoso Honvéd de Puskás; na Áustria, foi também técnico do «seu» Hakoah, e viria a terminar a carreira num regresso ao FC Porto, em 1973/74.
Morreu aos 82 anos, a 28 de agosto de 1981, em Viena, onde está sepultado.
«O que me fez escrever o livro foi a descoberta de que ele não era um refugiado, mas sim um sobrevivente do Holocausto, o que faz desta uma história tão dramática. Boa parte da Europa queria-o morto e, passado 16 anos, ele ganhou a maior competição desportiva da Europa: a Taça dos Campeões Europeus com o Benfica», exclama David Bolchover.
Por sua vez, António Simões proclama: «É extraordinário como este homem, com tudo o que passou, não ter deixado de ter em si afeto.»
Na esplanada da confeitaria Horváth, no cruzamento entre a Árpad com as ruas Virag e Petröfi, fechamos o livro sobre Guttmann. Ainda custa a acreditar como aquele parque de estacionamento ali em frente tenha tanta história por contar.